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O que dizem os números sobre violência contra mulheres?

Números Alarmantes: 1.238.208 mulheres vítimas de violência em 2023 e crescimento de feminicídio e estupro

Maíra Beauchamp Salomi* Publicado em 26/07/2024, às 06h00

É importante reconhecer o alarmante crescimento da violência contra mulheres, incluindo feminicídio e estupro, em 2023.
É importante reconhecer o alarmante crescimento da violência contra mulheres, incluindo feminicídio e estupro, em 2023.

Várias foram as manchetes dos últimos dias apresentando os resultados do 18º Anuário de Segurança Pública publicado na semana passada. Os números de fato são alarmantes. Somente no ano de 2023 foram 1.238.208 mulheres vítimas de diversas modalidades de violência, tais como ameaças, agressões domésticas, feminicídio e estupro. Todos os números absolutos de ocorrências desses delitos cresceram em relação ao ano de 2022, exceto pela taxa referente ao homicídio, que caiu 0,1%, correspondente a apenas 4 casos a menos em 2023. 

Para ilustrar esse aumento, basta verificar as taxas de variação entre um ano e outro. Do ano de 2022 para 2023, o percentual de incremento foi de 16,5% para o crime de ameaça, 9,8% para lesão corporal no contexto doméstico, 34,5% para stalking, 33,8% para violência psicológica, 28,5% para assédio sexual, 48,7% para importunação sexual e 0,8% referente aos feminicídios. No caso do estupro o aumento foi de 5,2% e para o estupro de vulnerável 5,3%. Os números absolutos indicam 1 estupro a cada 6 minutos praticado no ano de 2023, com 83.988 casos registrados em 12 meses.

É um cenário realmente desesperador, sobretudo se observada a evolução histórica que apresenta um número de 43.869 casos de estupro e estupro de vulnerável no ano de 2011 e 83.988 no ano de 2023. Mais um recorde foi apresentado para o feminicídio: foram 1.467 pessoas mortas por serem mulheres, o maior registro desde a publicação da lei que tipifica o crime, em 2015.

Um primeiro olhar de preocupação se volta para o perfil das vítimas, que continua o mesmo. Para o feminicídio e mortes violentas intencionais, as vítimas são negras (66,9%), com idade entre 18 e 44 anos (69,1%). No caso dos estupros, o perfil também permanece estável, semelhante ao já apontado em anos anteriores. As vítimas são, principalmente meninas (88,2%), negras (52,2%), de idade até 13 anos (61,6%).

O perfil dos agressores também tende a se repetir. Tendo em conta todas as faixas etárias, familiares são os autores em metade dos casos de violência sexual no país, parceiros íntimos e ex-parceiros representam 20,8% dos autores dos crimes e 14% são outros conhecidos. O mais assustador é que a residência aparece como local dos abusos sexuais em 61,7% dos casos. Já no feminicídio, o companheiro ou ex-companheiro da vítima é o responsável por 84,2% das mortes, percentual que chega a 97,3% dos casos quando se trata de familiares ou outros conhecidos da vítima.

Mas para além de revelar um avassalador crescimento da violência contra a mulher, o que está por trás dos números do Anuário?

Como ponto de partida para essa reflexão, é importante se ter presente que esse estudo tem como base dados fornecidos por fontes oficiais do Sistema de Segurança Pública tais como as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e as Polícias Militar, Civil e Federal. Isto significa que os números representam as ocorrências efetivamente registradas pelas vítimas, ou seja, levadas a conhecimento das autoridades.

Não há qualquer pesquisa ou estimativa de números sobre as ocorrências não relatadas pelas vítimas, as chamadas cifras ocultas. A subnotificação desse tipo de crime é uma realidade por diversas razões, dificultando a compreensão exata do cenário em termos estatísticos e, consequentemente, também a correta aferição da dimensão e evolução da violência de gênero. Fatores psicológicos como medo, vergonha e culpa, baixo conhecimento e conscientização sobre direitos, desconfiança nas instituições, burocracia e dificuldade de acesso, falta de acolhimento no momento das denúncias são alguns dos exemplos que impedem o registro e apuração de diversos crimes.

Não é preciso muita experiência para saber que as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, criadas com a finalidade de combater a violência de gênero, registrando e apurando ocorrências delitivas envolvendo mulheres, são lugares hostis, sem estrutura e sem preparo técnico para atender e acolher as vítimas. O atendimento, em sua maioria, é demorado, burocrático e pouco orienta e conscientiza as mulheres de seus direitos.  

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Contudo, não se pode ignorar que o aumento de registros representa, mesmo que nessas condições, o resultado de um movimento por parte de vítimas de violência de denunciar as agressões e buscar a proteção do Estado. Prova desse entendimento é o apontamento do Anuário quanto às medidas protetivas de urgência. No ano de 2023 foram 663.704 medidas protetivas distribuídas, o que representa 21,3% de variação em comparação com 2022. Dentre essas, 540.255 foram concedidas, 26,7% a mais se comparado com o ano anterior. É nítida, portanto, uma maior disposição das vítimas em denunciar, resultado também de uma efetiva conscientização pública sobre o que é a violência de gênero e quais os direitos das mulheres.

Especificamente no contexto do feminicídio, os dados indicam que 12,7% das vítimas tinham uma medida protetiva de urgência ativa no momento da morte, número que, embora baixo, demonstra a procura de proteção das vítimas em contexto de ameaça e violência.

Um outro aspecto a ser considerado é uma clara evolução por parte das instituições em registrar e classificar corretamente os casos de violência de gênero. Quase dez anos depois da promulgação da Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, que tipificou o feminicídio, é esperado que as autoridades já tenham se familiarizado com a ocorrência e deem o devido tratamento para o seu registro. O mesmo pode se dizer com relação aos crimes de stalking e violência psicológica, tipos penais introduzidos no ano de 2021, com absorção ainda recente pela sociedade, mas que, pela sua frequente ocorrência, já aparecem sendo devidamente registrados pelas autoridades policiais. 

Deve-se observar que, se por um lado mulheres mais conscientes dos seus direitos, que repudiam a violência e reivindicam direitos geram um movimento eficiente de maiores registros e apurações de responsabilidades, de outro provocam uma resposta extremada de um discurso mais misógino e violento. Diante da resistência feminina em ocupar o lugar que lhes foi reservado de poucos direitos e subordinação, muitos homens (e mulheres) incentivam e estimulam ainda mais uma reação violenta de opressão e dominação das mulheres.

Talvez por esse motivo, e pela persistente cultura patriarcal em nosso país, evidenciada pelas ainda gritantes desigualdades de gênero e pela firme resistência contra os avanços nos direitos das mulheres, tenha havido, de fato, um aumento real da violência de gênero nos últimos anos.

É inegável o incremento de registros de crimes contra as mulheres, que demonstra maior efetividade nas apurações e alguma resposta estatal para a proteção dessas vítimas. Mas certamente não é só esse aumento que o Anuário revela e sim um crescimento real desses delitos, até pelos diferentes canais de acionamento das autoridades pelas vítimas, como a chamada de 190, geralmente realizada em momentos de urgência, sem qualquer reflexão sobre a vontade de se processar o agressor. A violência está crescendo e não se pode negar.

Os dados indicam que se está diante de uma combinação de fenômenos a serem estudados, dentre os quais dois se destacam: um aumento real da violência de gênero e uma maior disposição e capacidade da sociedade em denunciar e combater essa violência.

É verdade que a violência contra as mulheres parece cada vez mais naturalizada no Brasil e cresce a cada dia, dando a impressão, por vezes, ser quase impossível de se combater. O Anuário, todavia, deve ser um sopro de esperança para alertar a sociedade sobre a urgência de se voltar os esforços das autoridades para a violência de gênero, ainda que tenha havido grande avanço em termos de registro e proteção.