Artigo da Promotora de Justiça Valéria Scarance, especializada em violência de gênero, analisando o caso de estupro envolvendo o jogador Daniel Alves
Valéria Scarance* Publicado em 29/03/2025, às 06h00
O mundo se uniu em sentimento de perplexidade diante da notícia de que o jogador de futebol Daniel Alves foi absolvido pelo Tribunal Superior da Justiça de Catalunha, que derrubou sua condenação (já ínfima) de 04 anos e 06 meses de prisão e de liberdade vigiada por 05 anos.
Para tentar explicar o inexplicável, trago esse texto com algumas considerações quanto ao julgamento e o impacto negativo para todas as pessoas que acreditaram que a Espanha era um exemplo a ser seguido.
Daniel Alves foi acusado por dois crimes (art. 178 e 179 do Código Penal Espanhol) porque, em 31 de dezembro de 2022, em um recinto reservado dentro de uma boate, submeteu a vítima (nome preservado) à prática de sexo oral e vaginal, mesmo diante dos pedidos da vítima para que parasse. Daniel usou força física e chegou a ejacular na vítima sem o uso de preservativo. Ao sair, Daniel Alves ainda disse para a vítima “eu saio primeiro”. Ela deixou o local chorando muito, desnorteada, quando foi atendida por funcionários já treinados (Protocolo No Callem (não se calem)), levada a um hospital, onde médicos recolheram amostras do corpo e roupas da vítima, que também recebeu tratamento profilático. Alguns dias depois, realizou o registro policial.
Durante a investigação e processo foram produzidas inúmeras provas: depoimento da vítima, depoimentos dos funcionários, constatação de lesões nos joelhos da vítima, relatório forense das vestes da vítima e vestígios em seu corpo (atendida no hospital no dia dos fatos), imagens do circuito de câmeras. O réu, no uso de seu direito de defesa, mudou diversas vezes sua versão, o que inclusive motivou o decreto de sua prisão preventiva pelo 15º Juizado de Instrução de Barcelona. Em sua defesa, Daniel Alves alegava que a relação tinha sido consentida (“estávamos desfrutando e nada mais”) e havia ingerido muitas bebidas alcóolicas (“estava fora de si”), como também alegaram as testemunhas de defesa arroladas – dono da boate e ex-esposa do futebolista.
Na sentença de primeiro grau, Daniel Alves foi condenado. Por ter reparado o dano, recebeu uma pena ínfima de 04 anos e 06 meses de prisão. Recorreram o Ministério Público, a Advogada da vítima e a defesa do réu.
A perplexidade pela pena aplicada (reduzida em razão da capacidade econômica do réu de arcar com o dano) cedeu lugar a uma perplexidade ainda maior: a absolvição.
O Tribunal Superior da Justiça de Catalunha absolveu Daniel Alves de todas as acusações desqualificando o depoimento da vítima pois, embora ela tivesse afirmado que foi ao banheiro encontrar Daniel por medo, as câmeras mostraram que foi voluntariamente a esse recinto. Salientou-se que, embora a vítima tenha liberdade sexual, “a divergência entre o relatado pela denunciante o que realmente aconteceu (referência à gravação) compromete gravemente a confiabilidade de seu relato”. Tendo em vista essa “inconsistência” a corte analisou cada detalhe do relato para verificar se havia outras contradições.
A partir desse momento, ao ler a decisão tem-se a noção de que o Tribunal Superior analisou o processo sob a mira de um microscópio para encontrar mínimas inconsistências.
O mais estarrecedor é que o Tribunal Superior era composto por três mulheres e um homem. Na decisão, salientam que a lesão nos joelhos poderia produzir-se de várias formas, que a sentença não é clara quanto ao sexo oral, o que desqualifica o depoimento também quanto à penetração vaginal, que o depoimento da amiga da vítima que a incentivou a denunciar dizendo que não era culpada pelo fato não é prova contundente e assim por diante.
Um ligeiro conforto surge ao ler que o Tribunal Superior de Justiça não afirma a inocência de Daniel Alves nem reconhece como certa a tese da defesa (relação consentida). Trata-se de uma absolvição por insuficiência de provas. No Direito, a dúvida sempre favorece o réu e esse foi o fundamento usado.
A leitura da decisão deixa claro que a desconfiança do depoimento da vítima partiu do fato de que – pelas filmagens - ela não foi “obrigada” a ir ao banheiro, nem constrangida, como teria afirmado.
Noticiar um fato tão invasivo é sempre muito complexo. Para a vítima, há um misto de culpa, vergonha, medo, além do impacto do trauma que afeta de forma decisiva a memória quanto a detalhes do fato.
Como Promotora de Justiça, que atuou em centenas de processos de estupro, posso dizer que existe uma distância gigante entre o que se imagina ser estupro e o que realmente é.
As pessoas imaginam que o estuprador é um homem odioso por quem sentiriam repúdio. Ao contrário, o estuprador é em regra alguém conhecido que ganha a confiança da vítima (31% familiares, 9,9% ex-parceiros, 28% parceiros, 13% conhecidos – FBSP – Segurança em Números 2024).
A reação mais comum para uma vítima não é lutar, correr, mas congelar. Essa reação instintiva acontece na maioria dos casos justamente porque a vítima fica paralisada pelo medo. Por isso, a maioria das vítimas sente culpa e muitas não denunciam por medo de que não irão acreditar em suas palavras.
Estupradores constroem “álibis” sociais – mostram-se como sujeitos agradáveis, por vezes defensores de direitos humanos, respeitam mulheres em público, o que lhes garante um fácil acesso às vitimas e permite que consigam mobilizar testemunhas em seu favor.
Grande parte da população ainda vive sob a influência silenciosa da cultura do estupro que atribui à vítima a responsabilidade pelo ato, como se o homem fosse um conquistador nato. O ato de violência é banalizado, o agressor poupado e a vítima julgada.
No Brasil, 44% das mulheres e 49% dos homens acreditam que se se uma mulher mudar de ideia após aceitar ter uma relação sexual não pode acusa-lo de estupro (Pesquisa Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva, 2023).
É exatamente o raciocínio do caso Daniel Alves, em que a filmagem mostrando que a vítima não foi forçada a ir ao banheiro colocou seu depoimento sob suspeita.
Na Espanha há uma lei mais avançada do que no Brasil, em que não basta dizer o não, é necessário haver o “sim” para que a relação não seja considerada abusiva.
Na Espanha, há o Protocolo “No callem” que inspirou o mundo todo e também o Brasil para adotar procedimentos de segurança em estabelecimentos noturnos.
Mas na Espanha há, também, julgamentos por estereótipos, machismo e desqualificação das vítimas.
Nesse momento, sentimo-nos traídos e traídas por termos depositado a confiança em um julgamento que inspirou o mundo como símbolo de justiça e enfrentamento à violência. Mas, apesar disso, não nos calaremos até que “solo si es si” (só o sim é sim) seja uma realidade na vida de todas as mulheres.
*Valéria Scarance (@valscarance) é Promotora de Justiça do MPSP, professora da PUC-SP, autora do livro Lei Maria da Penha e da cartilha Namoro Legal