Uma afirmação de Baby do Brasil tem causado indignação no país, ao dizer que as vítimas devem perdoar agressores sexuais. Abuso sexual é crime!
Valéria Scarance* Publicado em 12/03/2025, às 11h00
Uma afirmação de Baby do Brasil tem causado indignação no país, ao dizer que as vítimas devem perdoar agressores sexuais. Nas palavras da cantora, “se teve abuso sexual, perdoa!”, “e se for da família, perdoa”.
Há um grande perigo nesse tipo de afirmação.
O estupro é uma epidemia em nosso país e o remédio para a situação não reside na conduta da vítima, mas na prevenção do comportamento do agressor.
A pesquisa Visível e Invisível 5º edição (2025) divulgada esse mês revela que 10,7% das mulheres sofreram violência sexual, totalizando 5.3 milhões de mulheres. Das vítimas, 47% não fizeram nada após a violência, porque tentaram resolver sozinhas a situação, não tinham “provas”, não acreditavam na polícia ou tinham medo de represálias.
Quem são essas mulheres?
Nos crimes sexuais, em regra há o silenciamento da vítima porque não compreende o que está acontecendo (no caso de crianças) ou porque se sente culpada por não ter evitado o ato sexual.
Embora pouco noticiado, o comportamento mais comum de uma vítima é a reação de “congelamento”, a reação corporal mais primitiva e comum diante de um perigo intenso. Literalmente, o medo “congela” a reação. Estudo realizado em Estocolmo revelou que quase 70% das vítimas de estupro apresentavam imobilidade tônica e 48% imobilidade tônica extrema.
Dizer que a vítima deve perdoar transfere a responsabilidade pelo estupro para a vítima, aumentando significativamente sua vulnerabilidade e sentimento de culpa.
Sabe-se que as crianças e mulheres estupradas tendem ao silêncio justamente porque não são acolhidas ou compreendidas quando noticiam ou tentar noticiar o fato. Assim, agressores ficam impunes para perpetuar a violência contra outros membros da família ou a própria vítima. Infelizmente, estupradores em regra atacam dentro de casa e perpetuam seu comportamento em relação a várias vítimas.
Há casos em que estupradores vitimam três ou quatro gerações na mesma família. Recordo-me de um processo, em que um homem estuprou a filha, que engravidou, a neta fruto do estupro e estava tentando estuprar a bisneta quando foi preso. Há tantos casos que esse fenômeno é conhecido como transgeracionalidade.
Estupradores em regra ostentam o perfil de “bons cidadãos”, o que lhes permite se aproximar e ganhar confiança das vítimas. Assim, o silenciamento de uma vítima, a quem se impõe o dever de “perdoar”, pode significar o padecimento de várias outras vítimas.
A denúncia da vítima é importante também para proteger a nova vítima da continuidade da violência, que em regra acontece em casa. Pela lei, a vítima criança ou adolescente deve ser ouvida em depoimento especial e graças à Lei Mari Ferrer não é possível fazer qualquer tipo de questionamento íntimo revitimizante.
Essa postura de proteção foi reforçada pelo STF no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1107. Reconhecendo o machismo estrutural no Poder Judiciário, o STF decidiu que é inconstitucional a prática de questionar a vida sexual ou o modo de vida da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra mulheres, pois esses questionamentos vitimizam duplamente a mulher.
Embora os índices sejam alarmantes, no Brasil existe lei severa para estupro que deve ser aplicada para proteger outras potenciais vítimas e trazer tranquilidade social.
Em 1969, foi feita uma experiência interessante na Califórnia, na Universidade de Stanford chamada de Broken Windows Theory (Teoria das Janelas Quebradas) . O professor Philip Zimbardo e seus alunos deixaram dois veículos idênticos em bairros com grande riqueza e grande exclusão. Na primeira semana, o carro deixado no segundo bairro estava totalmente destruído e o outro carro intacto. Então, ele determinou que as janelas fossem quebradas do primeiro carro e, após uma semana, no bairro nobre o carro também foi completamente sucateado. Essa teoria mostra que a ausência do Estado é um dos fatores determinantes para a prática de crimes.
A impunidade associada à falta de investimento público contribui sensivelmente para o aumento dos crimes, inclusive, de estupro. E é por isso que não compete às vítimas aparar as janelas que foram quebradas.
O QUE FAZER EM CASO DE VIOLÊNCIA
. Em caso de flagrante, ligar para 190
. Denuncias anônimas/orientação : Disque 100 (crianças/adolescentes) e Ligue 180 (mulheres)
. Acionar Conselho Tutelar
. Registrar BO em qualquer Delegacia (não precisa ser especializada)
*Valéria Scarance é Promotora de Justiça, Professora da PUC-SP e autora de diversos livros, inclusive sobre a Lei Maria da Penha.
**edição de Patrícia Alves, jornalista e repórter de TV