Quando uma doença não é reconhecida, o sistema reproduz a violência através da invisibilidade

A experiência de pacientes com EM/SFC revela a necessidade urgente de políticas públicas e acolhimento por parte do Estado para sair da invisibilidade

Ivana Andrade* Publicado em 25/08/2025, às 06h00

Ivana Andrade, que tem SFC - Divulgação

Durante mais de duas décadas convivi com sintomas incapacitantes de fadiga extrema, mal-estar após pequenos esforços, náusea, sudorese e dificuldade de raciocínio. Procurei atendimento médico inúmeras vezes e, em vez de escuta e investigação clínica, escutei coisas como: “isso é coisa da sua cabeça”, “você está muito bagunçada”, “volte quando estiver melhor”.

Não houve acolhimento. O que houve foi gaslighting — e isso adoece tanto quanto a própria doença. Essa experiência é compartilhada por mais de 1,5 milhão de brasileiros que sofrem com a Encefalomielite Miálgica/Síndrome da Fadiga Crônica (EM/SFC) — uma doença debilitante, subnotificada, subdiagnosticada e estigmatizada. No Brasil, 25% dos pacientes vivem em condição severa, muitas vezes acamados ou totalmente dependentes de cuidados.

 

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O problema vai além do sofrimento biológico: o Estado tem falhado de forma sistemática em reconhecer e responder a essa realidade. Em novembro de 2023, estive em um evento de inclusão no Palácio do Planalto. Diante do silêncio governamental sobre a EM/SFC, abri um banner pedindo socorro ao então presidente, em nome desses pacientes. A assessoria presidencial me pediu que o fechasse, prometendo uma reunião com a primeira-dama. A reunião nunca aconteceu — e esse episódio deixou claro que a invisibilidade é, muitas vezes, institucionalizada.

Desde então, participei de diversas reuniões com o Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia, CAPES e Secretarias de Saúde. Ouvi, de forma explícita, que “não é possível fazer políticas públicas para esses pacientes porque não há nada sobre o tema no banco de dados do Ministério da Saúde”. Como exigir evidência científica em um cenário no qual o próprio Estado se recusa a reconhecer a existência da doença? Apesar dessa perspectiva alegada pelo servidor do Ministério da Saúde, existem bancos de pesquisas voltados especificamente para o tema em Harvard, Stanford, Londres, Canadá e etc. Além disso, alguns consensos internacionais recentes sobre a doença.

Em 2024, consegui finalmente uma reunião com a ex-ministra da Saúde, Dra. Nísia Trindade. Expus a gravidade da situação: o Brasil não possui diretrizes clínicas, protocolos diagnósticos, profissionais capacitados nem tratamento ofertado.

Solicitei, então, a criação do primeiro departamento de atenção especializada para pacientes com EM/SFC. A ministra se comprometeu — e propôs que a iniciativa fosse implantada no Hospital São Paulo, apoiada pelo Dr. Rudolf Oliveira (pesquisador com PhD em Harvard).

Parecia o início de uma mudança concreta. Mas o que veio depois foram e-mails ignorados, reuniões inconclusivas e a nova troca de ministro. Em uma das últimas conversas oficiais, ouvi que os pacientes com EM/SFC seriam incluídos no Programa de Atenção Especializada. O argumento parece, à primeira vista, positivo. Mas esbarra num fato irrefutável: mesmo com a Lei 14.705/23 exigindo um protocolo específico para esses pacientes, o Brasil ainda NÃO possui PCDT (Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas) para EM/SFC, nem formação adequada para os profissionais de saúde, nem diagnóstico e, muito menos, tratamento. Inclusive, o Ministério da Saúde alega que o PCDT de Dor Crônica inclui esses pacientes, no entanto, dor crônica não está nos critérios atuais de diagnóstico (apesar de acontecer de alguns pacientes apresentarem esse sintoma).

Dessa forma, anunciar uma inclusão “programática” sem garantir as condições técnicas e estruturais necessárias é apenas uma forma sofisticada de manter o status quo. Um departamento de atenção especializada abre portas para pesquisa, diagnóstico, tratamento adequado, formação e conscientização dos profissionais da saúde. Passou da hora dos pacientes deixarem de vivenciar a ausência de escuta, acolhimento e empatia pela falta de conhecimento de quem está realizando o atendimento.

Lutar por políticas públicas para uma doença subnotificada e estigmatizada é enfrentar a doença e, ao mesmo tempo, a indiferença do Estado. É entender que a recusa da escuta também é uma forma de violência. E que silenciar o sofrimento de milhares de pessoas é tão grave quanto negar cuidados básicos.

A invisibilidade não será superada com discursos. Será superada quando o país reconhecer que existe, sim, urgência em garantir diagnóstico, tratamento e dignidade a quem vive com EM/SFC. Até lá, continuaremos levantando a voz — e, se for preciso, abrindo banners — para lembrar que vidas invisíveis também exigem políticas públicas concretas.

*Ivana Andrade é psicóloga e ativista pelos direitos de pacientes com Síndrome da Fadiga Crônica

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