O colunista Plínio Camillo nos traz neste espaços sugestões de leitura de autoras pretas. O texto de hoje nos apresenta Débora Medeiros de Andrade
Plínio Camillo* Publicado em 28/05/2024, às 06h00
Sentada, olhando para fora. Farol vermelho. Muro branco. Três moleques pretos de costas, mãos nas costas, costas nuas, olhos nus. Cabeças baixas, pés descalços. Mãos brancas fardadas vasculhando em seus corpos não se sabe o quê. Moh sol. Uma barraca de pipoca, doce, salgada e batata frita, das onduladas, não do saquinho, as outras, sem ranhuras. Homem com pelos nas mãos, tão brancos quanto os de sua cabeça. Olhos tristes. "Tem troco pra 10?". Eu só queria voltar pra casa.
De pé, olhando para fora. Da janela suja, outro ônibus, parado na via contrária com viaturas à frente. No chão, dava para ver mesmo no escuro. Um corpo vestido de prata, como frango ao forno envolvido em papel alumínio. Poucos metros depois, atrás do ônibus, engarrafamento, buzinas, xingamentos. Talvez estivessem com pressa. Dor de cabeça. Luzinhas vermelhas passando rapidamente pela esquerda enquanto corpos pretos, em sacos-uniformes, entram pela direita comendo pipoca. Eu só queria chegar em casa.
Psicóloga especialista em educação. Mestranda em ciências humanas pelo PPG em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades | Diversitas | FFLCH | USP, com pesquisas sobre relações raciais e subjetividades. A relação com diversas linguagens artísticas traz cores ao meu trabalho, tanto na clínica quanto no desenvolvimento de projetos, eventos e materiais educacionais antirracistas, de forma articulada, visando o desenvolvimento humano em diversos territórios. Finalista do Prêmio Jabuti 2022 com a coletânea PRETOS EM CONTOS – Volume 2
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Sou Débora. Preta, mulher cis, psicóloga, educadora, e metida a artista (risos).
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você sendo ancestral em seus escritos?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Pensar em ser ancestral me remete a deixar algo de frutífero para quem vem depois, e às vezes quem vem depois, veio antes... Não sabemos quem vai encantar primeiro, e nem a bagagem de quem brotou agora, então, a nossa relação com o tempo e com o assentamento das coisas necessita ser sempre cuidada... Acho que estou (estamos) em constante aprendizado sobre nós mesmas e ao mesmo tempo em mutação. A mudança é a constância. Desta feita, ser ancestral nos escritos me parece ter a ver com uma conexão com a vida da maneira mais simples e profunda possível... identidade, identificação, idealização, individuação, coletivização, coleta, calor e frio. Na escrita, como na vida, tudo cabe, mas não de qualquer jeito. O que deixamos quando escrevivemos? (opa, isso não é uma mera aglutinação, vale dar uma olhada na minha mestra Conceição Evaristo aqui)
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Me preparo para a escrita vivendo, me movimentando, olhando para a vida, arrumando algumas certezas e depois duvidando de todas elas. Me preparo amando e sentindo raiva (muita e de muita coisa rs). Me preparo escrevendo, dançando, chorando, comendo coisas gostosas. Desejando mexer um pouquinho que seja nessa patifaria que impede um monte de gente parecida comigo de sonhar, de dançar, de poder viver com leveza e sem precisar estar em estado de alerta todo o tempo.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual a função social da sua literatura?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Escrevo pela saúde mental e pela educação.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Me redescubro negra todos os dias. Fenotipicamente sempre foi óbvio, sou retinta. Mas os diversos significados disso se ampliam, complementam, modificam a cada movimento e cada relação e cada território. Pelos contornos e afetações, ora dói mais, ora dói menos. Oras... tem também de não doer. De ser prazer. Quero conseguir em breve (fo)focar desse ser prazeres, como nos lembra Carmem Faustino. Prazeres destes e de outros, que ser negra me proporciona, como, por exemplo, poder fazer parte de coletivos de artes negras e tudo o que vem em consequência disso.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Oralitura - definido por Leda Martins que usa o termo para designar as histórias e os saberes ancestrais passados não apenas através da literatura, mas também em manifestações performáticas culturais. Esse conceito se faz palavras em seus escritos?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Tenho uma relação de amor com as artes desde pequena. Com desenho, dança, canto, percussão. A escrita veio primeiro, mas veio por último. E nela, tô eu toda, e tudo o que me move.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é você leitor?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Sou leitora lenta. Devagar mesmo. Leio geralmente várias coisas ao mesmo tempo, todas devagar. Me perco bastante. E nessas, me acho.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação do Livro?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Estranho e familiar. Tem horas que nem creio que isso está acontecendo, já aconteceu, e vai acontecer. Tem horas que me vem um sentimento de que seria isso mesmo.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que você escreve?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Às vezes para parar de doer. Às vezes para gozar. Me lembro aqui da Gloria Alzandúa, no texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. “Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Por que não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.”
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Muitas, mas neste momento me vieram à memória músicas que meu pai colocava para que eu e meu irmão escutássemos na infância. Daí tem Jorge Ben, Martinho da Vila, Araketu, Tim Maia, Jorge Aragão, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Alcione, Trio Esperança, Marvin Gaye, The Manhattans, The Temptations, Diana Ross, , etc... e muito forte uma música em especial pulou aqui: Os Originais do Samba, “É preciso cantar” (Pra ser feliz nessa vida é preciso cantar / Canto e desfaço a tristeza que trago no olhar / (...) Canto o amor e me esquivo dos males da vida / Zombo de quem só odeia com medo de amar / Canto amor e me sinto feliz em cantar / Amor que trago no peito / Amor que tenho pra dar)
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: O primeiro não sei. Mas um muito importante foi mostrar um texto para o Diogo Nogue, que me impediu de jogar fora.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Tive a honra de trabalhar com Conceição por um ano, num grupo de pesquisa durante o mestrado. Ainda não assimilei essa experiência. Talvez eu não consiga responder a esta pergunta (ou já tenha respondido).
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Ser corajosa. Assim como ser mulher, e ser negra.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Inspiração ou transpiração?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Tudo junto. Sem transpiração a inspiração se perde.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Espiritualidade, família, escrita, dança, luto, sexualidade. Não necessariamente nesta ordem.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é o seu processo de escrita?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Desorganizado. Quero aprender a me disciplinar melhor.
NOTAS DE ESCURECIMENTO: Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
DÉBORA MEDEIROS DE ANDRADE: Geralmente sou eu mesma. Mas nem sempre sou a mesma. Às vezes sou uma eu que quis ser, ou uma eu que deixei de ser, ou uma eu que talvez um dia seja. Nessa, nunca sou só eu.
Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.
Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento
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