O colunista Plínio Camillo nos traz neste espaços sugestões de leitura de autoras pretas. O texto de hoje é de Ifé Rosa Oadq, A Regra
Redação Publicado em 23/05/2024, às 06h00
Ninguém contou a verdade para Maria. Por mais que ela perguntasse para si mesma ou para Deus, a resposta nunca chegava. Naqueles dias se lembrava de quando era pequena e deitou-se no sofá da sala e sonhou com uma senhora bem velha que lhe entregava um antúrio escarlate com raiz e tudo dentro de uma cabaça. Esse sonho veio por três dias seguidos, quando o sono da sesta lhe tomava nas tardes quentes de Salvador. Lembrava do dia que sua regra veio, e não sabia muito bem o que fazer pois ninguém na casa de acolhida havia lhe orientado sobre as coisas da vida.
Pegou um sabugo de milho e apertou bem forte entre suas pernas esperando estancar aquela sangria. Quando viu que não parava, contou temerosa para D. Severina que estava morrendo. Quando se lembrava daquele dia, sorria com saudade de sua inocência. Ao completar dezoito anos, precisava ir embora. As meninas da casa fizeram bolo de fubá com goiabada e comeram aos prantos sabendo que um dia também teriam que ir embora. Nem o dulçor da goiabada foi capaz de aplacar o gosto amargo da despedida.
Com seus cabelos trançados, banho tomado e barriga cheia, Maria foi viver sua vida sem saber o que o mundo lhe reservava. Não demorou muito tempo conheceu Nego Bil para quem deu seu coração. Sua segunda gravidez haveria de vingar e se Deus quisesse seria uma menina. Não foi atendida em suas petições ao Sagrado, nove meses depois estava com Manoel nos braços lhe sugando até a própria vida enquanto mamava. Ela nunca soube exatamente quando foi que percebeu que seu menino era diferente.
Nego Bil metia a mão na cara do filho a cada comportamento inadequado. Maria foi deixando de amar seu homem lentamente. Cada vez que ela via seu filho chorar pelos maus tratos do pai, o amor que ela lhe devotava ia se esvaindo feito conta gotas. Um dia antes de completar quinze anos, Manoel pediu que Maria lhe deixasse usar seu vestido.
Ela estava estendendo roupa do varal e o calor estava de rachar mamona. Não viu problema no pedido e permitiu que ele realizasse seu desejo. O menino era magro que só, tinha a pele bem escura igual à do pai. Ela não viu a hora que Nego Bil chegou, mas seu vestido branco ficou pintado de carmim do sangue que jorrou pela boca com o soco que levou do pai.
Enquanto colocava gelo no nariz de sua filha, ela pedia desculpas por ter estragado seu vestido. Depois que Nego Bil morreu de morte matada, a paz reinou na casa. Maria e Manoela eram as únicas donas do sobrado que Nego Bil lhes deixou de herança.
Ifé Rosa OADQ - Filha de Dona Ana e Seu Apolônio, mãe de Ana Mel, Maria Luz e Jorge Bem. Mulherista AfriKana, Pretagoga, Educadora Social, Escritora e Arteira. Pesquisa, desde 2013, formas de combater o racismo estrutural observando a arte/cultura/educação como estratégia para sensibilização e fortalecimento do povo preto. Atua em palestras, vivências artísticas/culturais, oficinas, mediação e produção cultural. Participa dos Coletivos DiadeNega e Posse Hausa. Finalista do Prêmio Jabuti de 2022 – Categoria Contos com PRETOS EM CONTOS – Volume 2
Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.
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