Além da temida síndrome alcoólica fetal, o consumo de álcool durante a gravidez ainda traz repercussões negativas no organismo da gestante
Corintio Mariani Neto* Publicado em 30/12/2022, às 06h00
O consumo de álcool constitui um sério problema de saúde pública de difícil combate. Isto ocorre por vários motivos, entre os quais, o fato de o álcool ser considerado uma droga lícita, de ampla utilização social.
Porém, o álcool é um potente psicotrópico, ou seja, atua sobre o sistema nervoso central e pode levar à dependência. Todos esses fatores se agravam durante a gestação, pela ocorrência da síndrome alcoólica fetal (SAF).
Historicamente, desde os tempos bíblicos, há relatos de possíveis repercussões fetais e neonatais do consumo de álcool pela gestante. Na época do Império Romano relatava-se a incidência aumentada de abortamentos, natimortos e recém-nascidos malformados cujas mães faziam uso excessivo de bebidas alcoólicas na gravidez; portanto, os efeitos deletérios do álcool são conhecidos há muitos séculos.
No século XVIII, durante a epidemia do gim, na Inglaterra, foi documentado um aumento da prematuridade, da mortalidade perinatal e das taxas de retardo mental nos descendentes. Em 1973, Jones e colaboradores descrevem um padrão de malformações em fetos de mães consumidoras de álcool, apresentam critérios diagnósticos e denominam esse conjunto de anomalias de síndrome alcoólica fetal (SAF), chamando a atenção mundial para essa síndrome.
Até recentemente, havia certa tolerância ao consumo de pequenas quantidades de álcool durante a gravidez e a lactação, endossada pelo Departamento de Saúde do Reino Unido que, em publicação de 2007, descreveu um possível limite seguro representado por uma a duas unidades de álcool, uma a duas vezes por semana. Cada unidade equivalendo a 250 ml de chope ou 150 ml de vinho.
Atualmente, sabe-se que não há limite seguro na gestação, mesmo que seja uma dose ocasional, episódica, em qualquer época. Segundo estudo publicado na revista The Lancet, em torno de 10% das grávidas, ao redor do mundo, consomem álcool, e a SAF ocorre em uma a cada 67 gestações.
Publicação nacional, de Mesquita e Segre, em 2009, envolvendo quase 2.000 mães de escolaridade média, já mostrava que 54% delas consumiram álcool em algum momento da gestação e 22% o fizeram durante toda a gravidez.
O álcool presente nas bebidas alcoólicas é o etílico e sua concentração varia de acordo com o tipo de bebida ingerida. Ele é absorvido pela mucosa oral, pelo estômago e intestino delgado, atingindo a corrente sanguínea em torno de uma hora.
Sabe-se que a biodisponibilidade do álcool na mulher é maior que no homem, por vários motivos: maior absorção da droga, maior proporção de gordura corpórea, menor quantidade de água total no organismo e menor atividade de enzimas específicas. Disso resulta que o etanol se concentra mais no sangue da mulher, que se embriaga mais precocemente e de maneira mais explícita que o homem, além de ter complicações físicas mais precoces e mais graves.
O álcool cruza a placenta e atinge o feto, sendo que o líquido amniótico atua como um reservatório, prolongando a exposição fetal ao álcool. Esta exposição será tanto maior, quanto menor for a capacidade metabólica materna, que costuma ser lenta e variável de uma gestante para outra.
De maneira indireta, o álcool interfere no apetite da grávida, levando-a à má nutrição, provocando constrição dos vasos da placenta, tendo como consequência a dificuldade na passagem de nutrientes e oxigênio para o feto. Esses efeitos resultam em restrição do crescimento fetal e ocorrência de malformações congênitas.
Saliente-se que a própria gestante consumidora de álcool está sujeita a consequências sérias, tais como, diminuição dos reflexos, aumento da acidez gástrica e maior risco de broncoaspiração. Por provocar estreitamento dos vasos do útero e da placenta, ocorrem mais abortamentos espontâneos e partos prematuros.
Além disso, gestantes usuárias de álcool tendem a rejeitar cuidados pré-natais; há maior incidência de sintomas depressivos e de violência doméstica, aumento da mortalidade materna, além de aumento de abortamentos e natimortos.
O aconselhamento materno para abster-se de álcool é fundamental e depende de uma atuação conjunta de todos os profissionais que lidam com a saúde da mulher, preferencialmente, começando antes da gravidez, ainda durante o planejamento familiar.
Nunca é demais insistir: TOLERÂNCIA ZERO AO CONSUMO DE ÁLCOOL NA GRAVIDEZ!
*Corintio Mariani Neto é ginecologista e obstetra e Membro do Núcleo de Estudos dos Efeitos do Álcool na Gestante, no Feto e no Recém-nascido (SAF) da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
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