Multiparentalidade transforma o conceito de família e impõe desafios à justiça
Nardenn Souza Porto* Publicado em 21/09/2025, às 06h00
O conceito de família no Brasil passou por profundas transformações nas últimas
décadas. Da tradicional estrutura nuclear, tendo pai, mãe e filhos, evoluímos para
reconhecer arranjos familiares plurais, nos quais o afeto e a convivência têm o
mesmo peso que a biologia. Nesse contexto, a multiparentalidade surge como uma das mais significativas inovações do Direito de Família contemporâneo, permitindo que uma criança seja legalmente registrada com mais de dois pais ou mães.
A multiparentalidade foi consolidada pela jurisprudência a partir de decisões
paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O
marco mais conhecido é o julgamento do Recurso Extraordinário nº 898060/SC, de
relatoria do Ministro Luiz Fux (Tema 622/STF), no qual se reconheceu a possibilidade
de coexistência da filiação biológica e socioafetiva, afastando a ideia de exclusividade.
O fundamento jurídico repousa nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III, da CF/88), da proteção integral da criança e do adolescente
(art. 227 da CF/88) e do melhor interesse do menor, previsto no Estatuto da Criança
e do Adolescente (arts. 3º e 4º da Lei nº 8.069/90).
Na prática, isso significa que a criança pode ter reconhecidos, em seu registro civil,
tanto os pais biológicos quanto aqueles que exerceram a paternidade ou maternidade
socioafetiva. Essa ampliação gera efeitos jurídicos relevantes, quais sejam, direitos
sucessórios, obrigações alimentares, inclusão em planos de saúde, exercício conjunto
do poder familiar e, sobretudo, o fortalecimento da identidade afetiva da criança. Trata-se de um avanço que aproxima o Direito da realidade social, evitando rupturas
artificiais entre laços de sangue e laços de amor.
Entretanto, o tema também traz desafios consideráveis. O primeiro é a ausência de
legislação específica que regule de forma detalhada a multiparentalidade, até o
presente momento. Hoje, a matéria é suprida pela interpretação constitucional, pela aplicação subsidiária do Código Civil (arts. 1.593 a 1.610), pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente, e pela atuação da jurisprudência. Essa lacuna normativa pode gerar
insegurança jurídica, especialmente em conflitos envolvendo guarda, alimentos e
herança.
Além disso, surgem debates complexos, como de que forma equilibrar a divisão do poder familiar entre três ou mais genitores? Como fixar responsabilidades financeiras em caso de litígio? Como lidar com eventuais divergências sobre educação, saúde e
religião?
Nesse cenário, o papel dos advogados de família é essencial. Eles atuam não apenas
na formalização judicial ou extrajudicial da multiparentalidade, por meio de ações de
reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva ou pela retificação de
registro civil, mas também na mediação de conflitos, na elaboração de acordos
equilibrados e na conscientização dos pais e mães sobre os efeitos jurídicos do instituto. O enfoque deve sempre privilegiar o melhor interesse da criança, evitando que
disputas adultas transformem o mecanismo em instrumento de litígio.
A multiparentalidade representa, portanto, um marco civilizatório que rompe
paradigmas, valoriza os vínculos afetivos e amplia a proteção das crianças. Contudo,
a consolidação desse avanço depende de um esforço conjunto entre Judiciário,
advocacia, Ministério Público, Câmara dos Deputados, Senado Federal, governantes
e sociedade.
O desafio é transformar a inovação em estabilidade, por meio de políticas públicas e legislações adequadas, garantindo segurança jurídica sem perder de vista que, no Direito de Família, a lei deve servir sobretudo ao afeto e à dignidade humana.
*Nardenn Souza Porto é advogado e sócio da Nardenn Souza Porto Advogados
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