Advogada de direito familiar comenta os desafios e as virtudes da paternidade socioafetiva
Caroline Oehlerick Serbaro* Publicado em 13/08/2023, às 10h00
A paternidade é um conceito que transcende a mera ligação biológica entre pais e filhos. Nos últimos anos, a paternidade socioafetiva tem emergido como um tema crucial na compreensão das novas relações familiares. Este artigo explora a importância essencial da paternidade socioafetiva, destacando sua influência no desenvolvimento emocional e social das crianças e adolescentes, bem como nas dinâmicas familiares contemporâneas.
Paternidade Socioafetiva Além dos Laços Biológicos: A paternidade socioafetiva se baseia no entendimento de que um pai não é definido apenas pela relação biológica, mas pela conexão emocional e pelo investimento afetivo que ele proporciona à criança. Em famílias recompostas, ou seja, as que um dos parceiros ou ambos possuem filhos de relacionamentos anteriores, adoções e outras configurações familiares não tradicionais, essa forma de paternidade desempenha um papel crucial na criação de um ambiente seguro e acolhedor para o crescimento dos filhos.
Impacto no Desenvolvimento Infantil: Estudos revelam que crianças e adolescentes que vivenciam paternidades socioafetivas saudáveis tendem a desenvolver melhor autoestima, habilidades sociais e emocionais. O apoio emocional e o envolvimento ativo de um pai, independentemente dos laços biológicos, contribuem para a formação de uma base sólida para o bem-estar psicológico, senso de pertencimento e o sucesso futuro da criança.
Desafios e Reconhecimento Legal: Apesar dos avanços, a paternidade socioafetiva ainda enfrenta desafios legais e sociais em muitas partes do mundo. A ausência de reconhecimento legal pode dificultar questões como herança, guarda e afins. Contudo, muitas jurisdições estão se movendo em direção ao reconhecimento e proteção da paternidade socioafetiva, reconhecendo sua relevância em nome do princípio do melhor interesse do menor - que objetiva a proteção de crianças e adolescentes A título de conhecimento, alguns dos países que reconhecem a paternidade socioafetiva atualmente são: Brasil, Portugal, Espanha, Argentina e França.
Direito de Família Brasileiro: A paternidade socioafetiva no direito de família tem ganhado cada vez mais reconhecimento e importância. No Brasil, essa forma de paternidade tem sido contemplada por diversos dispositivos legais e decisões judiciais que buscam proteger o bem-estar das crianças e promover a igualdade nas relações familiares.
O Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 reconheceu, em um julgamento histórico, a possibilidade de transformar a paternidade registral biológica em socioafetiva, desde que essa última seja comprovada por laços afetivos e de convivência. Esse reconhecimento ressalta a importância de considerar não apenas os vínculos sanguíneos, mas também os laços emocionais na definição das relações de paternidade.
A Lei 13.058/2014 também trouxe importantes mudanças ao estabelecer que a paternidade socioafetiva pode ser reconhecida mesmo sem o consentimento do pai biológico, se houver o desejo do pai socioafetivo e se este tiver convivido com a criança e a tiver tratado como seu filho. Essa legislação reforçou a ideia de que o afeto e o compromisso na criação são fundamentais para definir a paternidade.
A paternidade socioafetiva também é relevante em casos de adoção, onde pais adotivos estabelecem vínculos profundos com a criança. A Lei 12.010/2009, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), reconhece a importância da afetividade na relação entre pais adotivos e adotados, garantindo os direitos e deveres decorrentes dessa paternidade socioafetiva.
Possibilidade de Duplo Registro na Certidão de Nascimento: O Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP decidiu que a paternidade socioafetiva não impede o reconhecimento de filiação baseada na origem biológica ao manter dupla paternidade no registro civil de uma criança. A decisão unânime da 8ª Câmara de Direito Privado manteve na certidão o nome do pai afetivo, que já havia registrado a criança, e o do pai biológico, além dos quatro avós paternos.
Em juízo, a criança contou que visita com frequência o pai biológico e gosta dos encontros, mas também considera como pai quem a criou e a registrou na certidão de nascimento. O relator considerou "evidente a existência de vínculo afetivo entre o menor e ambos os genitores", e que a dupla paternidade não trará prejuízos, pois ele já convive com essa realidade ao longo dos anos.
O magistrado também considerou que, mesmo após descobrir que o infante não era seu filho biológico, o pai afetivo nunca deixou de exercer a paternidade. Deste modo, e "considerando que 'o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem' (Código Civil, artigo 1.593) e, que 'a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil' (Enunciado 256 do Centro de Estudos Judiciários – CEJ), o reconhecimento da multiparentalidade é o que melhor atende aos interesses do menor".
O Supremo Tribunal Federal – STF ressaltou a importância da socioafetividade na Repercussão Geral 622, de 2017, que traduziu a realidade de inúmeras famílias brasileiras. Os ministros entenderam o afeto como vínculo de parentesco, sem nenhuma hierarquia entre a filiação originada da consanguinidade, possibilitando, inclusive, que podem ser concomitantes, resultando na multiparentalidade. O Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, também editado em 2017, regulamentou as implicações decorrentes do julgamento. (fonte: IBDFAM e Conjur 03/02/2021) www.ibdfam.org.br
Famílias Modernas e a Paternidade Socioafetiva: A dinâmica familiar está evoluindo rapidamente, com muitas famílias se afastando do modelo tradicional. Nesse contexto, a paternidade socioafetiva desempenha um papel fundamental na promoção da coesão familiar, independentemente das origens biológicas. Ela incentiva a construção de relacionamentos baseados na confiança, no respeito e no amor mútuo.
A paternidade socioafetiva é essencial para o tecido das relações familiares contemporâneas. Ela destaca a importância do amor, do compromisso emocional e do apoio incondicional na criação e no desenvolvimento de crianças saudáveis e confiantes. Ela tem obtido reconhecimento crescente na justiça brasileira, refletindo a evolução das concepções sobre família e paternidade na sociedade. Esse reconhecimento é fundamental para assegurar que as crianças tenham direitos protegidos, independentemente dos laços biológicos, e para promover relações familiares saudáveis e baseadas no amor e no cuidado mútuo. À medida que as concepções tradicionais de paternidade evoluem, reconhecer e valorizar a paternidade socioafetiva se torna fundamental para a construção de laços familiares duradouros, significativos e que refletem nas relações humanas e na sociedade como um todo.
*Caroline Oehlerick Serbaro é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões com ênfase interdisciplinar em Psicanálise e Solução de Conflitos. É também Head direito de família do escritório Afonso Paciléo Sociedade de Advogados.