Lei sobre ensino de história e cultura afro-brasileira não é respeitada pela maioria das redes municipais de educação, aponta pesquisa

Sete em cada 10 Secretarias Municipais de Educação realizam pouca ou nenhuma ação para implementar a Lei 10.639/03

Redação Publicado em 28/04/2023, às 06h00

Lei foi promulgada há 20 anos para combater o racismo nas escolas - Foto: Divulgação

Estudo realizado com 1.187 Secretarias Municipais de Educação, o que equivale a 21% das redes municipais de ensino do país, revela que a maioria das secretarias (71%) realiza pouca ou nenhuma ação para a efetividade da lei que há 20 anos obriga escolas a ensinarem história e cultura afro-brasileira. Apenas 29% das secretarias realizam ações consistentes e perenes para garantir a implementação da lei, como mostra a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira", realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, lançada dia 18 de abril, em Brasília.  

Ao longo de 2022, o estudo verificou como e se foram construídas condições para combater o racismo estrutural, quais os passos percorridos, as lacunas existentes e os desafios que compõem o grave cenário da implementação da Lei 10.639/03 nas redes municipais de ensino, principais responsáveis pela educação básica do país. Elas atendem 49,6% de crianças e adolescentes, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica 2022, divulgados em fevereiro deste ano.  

Com apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), parceria estratégica da Imaginable Futures e elaboração da Plano CDE, a pesquisa agrupou os municípios em três perfis: (1) as que realizam ações de maneira menos estruturada; (2) as que não realizam nenhum tipo de ação; e (3) as secretarias que realizam ações consistentes e perenes para a implementação da lei.  

O maior grupo (53%) realiza ações de forma menos estruturadas, episódicas e reativas, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Nesses casos, o trabalho fica sob a responsabilidade de um grupo pequeno ou mesmo a cargo de uma pessoa, sem estrutura e suporte institucional efetivo.  

As secretarias que admitem não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da lei representam 18% do total. Embora conheçam as normativas ou tenham estabelecido regulamentação local, essas secretarias desrespeitam a lei. Somadas, as secretarias que realizam pouca ou nenhuma ação para respeitar a lei representam 71% da amostra.  

Só 29% das secretarias realizam ações consistentes e perenes para garantir a efetividade da lei. Essas redes têm em comum estrutura administrativa, regulamentação local, dotação orçamentária e periodicidade na realização de ações para atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais. Ainda que seja um número distante do ideal, ele revela que três em cada dez redes municipais adotaram práticas para a implementação da lei que devem ser acompanhadas, estimuladas e replicadas.  

"A pesquisa demonstra que o compromisso político é decisivo para a implementação assertiva da Lei 10.639/03, e, por isso, esperamos que os municípios que fizeram a escolha por educar para a igualdade racial possam inspirar outros a seguirem o mesmo caminho", afirma Suelaine Carneiro, Coordenadora de Educação e Pesquisa de Geledés.  

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Falta de apoio  

A pesquisa mostra ainda que os gestores municipais sentem falta de apoio de estados e do governo federal para o cumprimento da Lei 10.639/03. Isto não só na forma de ações diretas, mas também por meio de cooperação técnica e financeira para que as bases estabelecidas pela lei não sejam apenas consideradas em datas comemorativas, como o mês ou semana do Dia da Consciência Negra, mas sim de forma constante, integradas ao ensino como um todo.  

“Nós esperamos que este estudo contribua para a discussão sobre como a forma de organização das secretarias impacta a atuação das redes escolares no combate ao racismo”, avalia Beatriz Benedito, analista de políticas públicas do Instituto Alana. “As decisões de gestores públicos têm um papel fundamental para o fortalecimento das práticas antirracistas e na efetivação da Lei 10.639/03 nas escolas. Colocada em prática, ela impacta a vida de todos os mais de 47 milhões de estudantes e profissionais da educação, com mais e melhores referências da contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros na história do nosso país.”  

Parceira da pesquisa, a Undime destaca a importância de atuação junto aos gestores para melhorar o trabalho realizado quanto à efetividade da lei. “A pesquisa nos mostra que ainda temos um longo caminho a ser percorrido para que todas as Secretarias Municipais de Educação do Brasil implementem ações que, de fato, promovam o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana. Certamente isso permitirá ao nosso país ter uma nova geração de cidadania antirracista, com crianças e adolescentes orgulhosos de sua herança, com senso de pertencimento e empoderamento. A Undime está atenta ao tema, e busca discutir com os gestores educacionais com intuito de melhorar a qualidade do trabalho desenvolvido”, afirma Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da Undime.  

Também no âmbito municipal, a Uncme reforça o compromisso para um maior controle e monitoramento social. “A Lei 10.639 veio preencher uma lacuna, mesmo que sua efetividade ainda seja um pequeno arbusto no jardim que precisa ser regado para se tornar um grande baobá. Porém, esse controle e monitoramento só se dará efetivamente quando ocorrer a prática e a conscientização política, pois estamos falando de reconhecimento de uma cultura, que, na maioria das vezes, é marginalizada. E a lei se solidifica pelo uso e não apenas pela sua concepção. Portanto, se faz urgente divulgar e acompanhar a efetivação da lei, principalmente nos sistemas de ensino, seja, municipal, estadual ou federal”, destaca Manoel Humberto Gonzaga Lima, presidente da Uncme.  

 

Desafios e temas prioritários  

As secretarias também responderam questionamentos sobre quais são as principais dificuldades e entraves na implementação da lei. Apesar dos 20 anos em vigência, 42% dos respondentes apontaram a dificuldade dos profissionais em transpor o ensino nos currículos e nos projetos das escolas, enquanto 33% apontaram a falta de informação e orientação suficientes às secretarias sobre a temática. Outra lacuna importante evidenciada pelo estudo é a falta de um planejamento de atividades que se desenvolva de forma permanente, ao longo de todo o ano. Quando questionados sobre as ações realizadas pelas instituições de ensino, 69% dos respondentes declararam que a maioria ou boa parte das escolas de suas redes realizam atividades apenas em novembro, durante o mês ou semana do Dia da Consciência Negra.  

Os gestores também foram perguntados sobre quais são os temas mais importantes a serem trabalhados nas escolas, e a maioria afirmou que são a diversidade cultural, literatura e cultura alimentar. Por sua vez, o legado da escravização nas Américas, o letramento sobre questões raciais e as construções de privilégios históricos foram menos citados. Ou seja, os temas priorizados dizem respeito a discussões importantes, porém que podem ser identificadas como “mais confortáveis”, em detrimento de assuntos mais sensíveis ou estruturais, como hierarquização de povos e saberes, espaços de poder e tomadas de decisão.  

Para Nathalie Zogbi, da Imaginable Futures, “uma educação que não é antirracista não cumpre seu propósito de formar crianças e jovens para o exercício da cidadania, para o avanço da democracia e de uma sociedade justa e próspera. A Lei 10.639 e sua efetiva implementação são elementos-chave para avançarmos nessa direção”.  

 

 

Assista a transmissão do lançamento da pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira", lançada dia 18/04, no YouTube da UNDIME (link).

 

 

Geledés Instituto da Mulher Negra

É uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros, pois são segmentos sociais que padecem de desvantagens e discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira. Posiciona-se também contra todas as demais formas de discriminação que limitam a realização da plena cidadania, tais como lesbofobia, transfobia, bifobia, homofobia, os preconceitos regionais, de credo, de opinião e de classe social.  

 

Sobre o Instituto Alana

O Instituto Alana é uma organização de impacto socioambiental que promove e inspira um mundo melhor para as crianças. Um mundo sustentável, justo, inclusivo, igualitário e plural. Um mundo que celebra e protege a democracia, a justiça social, os direitos humanos e das crianças com prioridade absoluta. Um mundo que cuida dos seus povos, de suas florestas, dos seus mares, do seu ar.

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