Assédio processual como violência de gênero

Você já ouviu falar em violência processual? É uma das maneiras cruéis de revitimização

Danielle Biazi * Publicado em 11/12/2024, às 06h00

A violência processual é grave -

O assédio processual tem ganhado maior relevância no debate da violência de gênero e pode ser caracterizado pelo abuso do direito de ação ou defesa com propositura de diversas demandas, recursos e incidentes, de modo geral sem fundamentação jurídica idônea, cujo objetivo primordial é tumultuar e prolongar o feito, intimidar, ameaçar e até mesmo sufocar financeiramente a mulher. Ele geralmente acontece em contextos que frequentemente também envolvem divórcio, partilha de bens, guarda e convivência com filhos, além da fixação de alimentos.

Dentre as múltiplas formas de abuso, algumas são mais frequentes: tentativa de desmoralização e superexposição da mulher a fim de questionar seus hábitos de vida; vitimização do agressor como justificativa para seus crimes; propositura de ações que instrumentalizem os filhos, como pedidos de guarda unilateral, reconhecimento de alienação parental ou questionamentos quanto aos alimentos, tudo sem fundamentação jurídica. Também é comum a identificação de fraude patrimonial que vise impedir a mulher de acessar bens do casal.

Tais mecanismos geralmente vem carregados de estereótipos de gênero, instrumentalizados através de petições de teor agressivo e intimidatório, recursos infundados e distribuição de ações paralelas que visam eternizar o debate jurídico. Esta estratégia não apenas sobrecarrega o Judiciário, mas também agrava o sofrimento psicológico e emocional das vítimas.

 

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É preciso lembrar que a Lei Maria da Penha não se limita à violência física, mas também ao abuso moral, psicológico, financeiro e sexual, tal qual previsto em seu artigo 5º. Especialmente no Direito de Família, a prática ganha corpo como uma nova forma de violência, na qual o agressor tenta ludibriar o Judiciário para manter o controle financeiro e emocional sobre a vítima, mesmo após a separação.

Dois exemplos recentes ilustram o fenômeno: a apresentadora Ana Hickmann enfrenta uma série de ações judiciais movidas pelo ex-marido, incluindo pedidos de indenização por danos morais e discussões sobre guarda de filhos. A defesa de Ana classificou as ações como "atos grotescos de assédio processual", visando constrangê-la e prolongar o litígio.

Outro caso envolve a apresentadora Titi Müller, que revelou sofrer violência processual após ser impedida, por liminar, de citar o ex-marido em redes sociais. A separação, marcada por agressões verbais e físicas, estendeu-se no Judiciário, dificultando o término do processo de divórcio.

Importante mencionar que as práticas aqui descritas vêm sendo objeto de firme repulsa do Poder Judiciário. Em 2019, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o abuso processual como ato ilícito sujeito à responsabilização civil por danos materiais ou morais daí advindos. Para além disso, em recente julgamento (ADPF 1107), o Supremo Tribunal Federal classificou como proibidas alegações relacionadas à forma de vida ou hábitos da mulher como fundamentação jurídica em processos que tenham por pauta questões relacionadas à violência doméstica ou crimes sexuais. A vedação pode ser invocada mesmo em processos de família, quando o contexto indicar tentativa de discriminação em razão do gênero feminino.

Em disputas familiares, o desvio do foco principal das ações é mecanismo marcado pela deslealdade processual, cujo único objetivo é turvar a apreciação objetiva do caso pelo Poder Judiciário. As consequências, por sua vez, se estendem para além dos tribunais: as vítimas enfrentam não apenas prejuízos financeiros, mas também graves danos emocionais, além de riscos à carreira, em função de danos à reputação. 

Ainda há muito a caminhar, mas tudo leva a crer que o Poder Judiciário tem se esforçado no letramento de seus atores nas questões de gênero e violência contra a mulher. Exemplo disso é a adoção obrigatória do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, por ocasião da Resolução 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça, passo importante para a conscientização e vinculação dos magistrados à uma postura de zero tolerância para a violência contra a mulher em todos os seus espectros.

 

*Danielle Biazi é advogada, Doutora e Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora em cursos de graduação e pós-graduação, e palestrante, também é advogada atuante no Direito Privado, associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil (IBERC).

 

 

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