Uma educação antirracista é urgente e deve envolver a todos
Ednéia Gonçalves* Publicado em 30/05/2024, às 06h00
A mudança da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pela Lei 10.639, em 2003, é um dos frutos da histórica luta do movimento negro, que protagonizou a resistência a um sistema escravocrata e colonial que teve na educação escolar um de seus principais alicerces para o projeto de manutenção intergeracional de privilégios. A defesa da alteração da legislação educacional, portanto, é mais do que uma questão de concordância, relevância ou vontade política. É uma transformação duramente conquistada pela população negra que informa há mais 20 anos que é função social da escola contribuir para a construção de uma nação igualitária a partir de um sistema educacional antirracista.
Conceitualmente o racismo é um conjunto de crenças e valores que tem por base o entendimento de que os seres humanos são “naturalmente” desiguais em função da cor da pele, do cabelo e de outras características físicas e/ou culturais. O racismo nega a igualdade de direitos, transformando diferenças em desigualdades e estabelecendo uma visão hierárquica entre grupos humanos.
Embora a forma como é visto e enfrentado no Brasil considere diferenças regionais, a violência do racismo está presente em todas as regiões do país. Na educação escolar sua principal manifestação institucional é a persistência do mito da democracia racial que sobressai nos currículos e no silenciamento das ações de denúncia e enfrentamento ao racismo cotidiano. Por isso, a educação escolar necessita intencionalmente desconstruir o mito da igualdade racial que ajudou a erguer, e reconhecer que a construção de um país democrático passa, necessariamente, pela resistência às opressões.
A alteração da LDB pela Lei 10.639/03 é um pilar da educação antirracista, e nos ensina que antirracismo não é um sentimento. É ação e intenção. A lei indica ainda que o racismo não é um problema criado por negros, que convivem diariamente com a discriminação, mas dos brancos que necessitam enfrentar a branquitude para assumir seu lugar na luta antirracista. Discutir a lei é trazer à tona também essa responsabilidade. Ao se deparar com os desafios para a sua implementação, a pergunta que se deve fazer é: quais são as principais barreiras hoje para o combate ao racismo na educação?
É preciso reconhecer, primeiramente, que a lei não é uma orientação que as redes públicas e privadas optam por adotar ou não. Até hoje, muitos estados, municípios e escolas públicas e privadas não cumprem o dever legal de aplicá-la, optando por reproduzir estigmas e produzir traumas que interferem diretamente na possibilidade de continuidade de trajetória escolar positiva e contínua para estudantes negres.
Se as Leis 10.639/03 e 11.645/08 indicam a obrigatoriedade da inclusão da cultura africana, afro-brasileira e indígena nos currículos, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais orientam “como” construir esse processo. Essas diretrizes são essenciais para a qualidade da educação escolar e são pouco acessadas pela comunidade escolar em geral.
Para a educação antirracista acontecer, é necessário que a escola assuma sua necessidade de aprimoramento para a construção de processos educativos qualificados para todas as pessoas. É também função social da escola articular os conhecimentos construídos pelas diferentes culturas presentes nos territórios e os conhecimentos sistematizados pela ciência com o objetivo de construir aprendizagens significativas para todas as pessoas.
A escola necessita de conexão com seu território para que a qualidade da experiência escolar tenha sentido para sua comunidade e esteja ligada à valorização dos saberes construídos na vida vivida fora do edifício escolar e suas conexões com abordagens curriculares emancipatórias. Da experiência de enfrentamento ao racismo vivenciada pelos jovens negros, por exemplo, emergem visões de mundo e propostas de transformação social que, de um lado, expressam os saberes ancestrais que mantiveram nas famílias negras o sentido da preservação da vida como desafio diário, com a mesma intensidade com que a cultura afro-brasileira encontrou no movimento negro a metodologia de atualização dos saberes coletivos presentes nos territórios periféricos.
O professor precisa ser formado para, ao se apropriar das narrativas de resistência, ser capaz de utilizar seus instrumentos metodológicos para construir e inspirar processos de aprendizagem comprometidos com a transformação da sociedade em um ambiente seguro para a expressão dos novos e transformadores saberes gestados na luta antirracista.
O combate ao racismo é o principal desafio da democracia brasileira e, para que a educação escolar assuma protagonismo nesse processo, a gestão do conhecimento não pode ocorrer como uma pirâmide, de cima para baixo, a partir de uma norma excludente. Como mostra a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, de Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana, a ausência de apoio de outros entes e/ou organizações é o principal desafio para a implementação da referida lei segundo as secretarias entrevistadas. Além disso, elas reconhecem que a temática não está na agenda de prioridades das gestões.
É por meio de uma coordenação federativa com governos estaduais e federal que os municípios terão apoio para construir uma trajetória escolar livre de violência e traumas. Quando a escola e as gestões se perguntam como têm contribuído para a construção de uma vida social igualitária, dá-se um passo fundamental para transformar a Lei 10.639/03 em ações, metodologias e atividades efetivas.
*Ednéia Gonçalves é socióloga e educadora. Atua como formadora de gestoras e professoras em organismos internacionais e redes públicas e privadas na área de Educação e relações raciais.