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Vanessa Ricarte, jornalista assassinada pelo ex-noivo, faria hoje 43 anos

Vanessa Ricarte sofreu feminicídio esta semana em Campo Grande. O ex-noivo a esfaqueou. A repórter Cláudia Gaigher conversou com o irmão da vítima

Claudia Gaigher, de Campo Grande* Publicado em 16/02/2025, às 11h00

Vanessa completaria 43 anos neste dia 16 de fevereiro - Arquivo pessoal
Vanessa completaria 43 anos neste dia 16 de fevereiro - Arquivo pessoal

(Exclusivo)

“A Vanessa faria aniversário dia 16 de fevereiro, vai ser um dia muito difícil porque era um dia que estaríamos comemorando o aniversário dela, de 43 anos.” Com a voz embargada pela emoção, Walker Diógenes revelou o drama que a família está vivendo desde a última terça feira. “Na última semana a Vanessa desapareceu, reduziu os contatos, o Caio se apossou do telefone dela e estava difícil a comunicação com ela. A gente achava que estava falando com ela, mas era ele que escrevia as mensagens. Ela conseguiu fugir e aí que ela pediu socorro para os meus pais.” Disse o irmão da vítima.

No início da semana, dia 12 de fevereiro, no final da manhã a mãe de Vanessa recebeu uma ligação da filha pedindo ajuda porque estava decepcionada com o então noivo, Caio Nascimento.

Mais cedo naquele dia, o pai de Vanessa viu algumas mensagens do Caio no celular, mas as mensagens foram apagadas pelo futuro genro antes de serem lidas. O pai da Vanessa estava fazendo hemodiálise na cidade onde a família mora, em Três Lagoas, a 326 km de Campo Grande em Mato Grosso do Sul. O pai terminou a hemodiálise, voltou para casa e organizou com a mãe de Vanessa a viagem até a capital para acudir a filha. Não deu tempo.

Vanessa registrou um Boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher localizada na Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande. Pediu uma medida protetiva contra o agora ex-noivo Caio Nascimento. Pelo relato do irmão dela, Vanessa nos últimos dias estaria em cárcere privado, impedida de sair de casa e coagida pelo companheiro. Ela conseguiu escapar e foi até a delegacia fazer a denúncia, pedir ajuda para se proteger das ameaças e para retirar os seus pertences da casa dela, onde o Caio permanecia e insistia que só sairia se a polícia o retirasse de lá.

Assista ao vídeo de Cláudia Gaigher no instagram

Desde o início do relacionamento de Vanessa com Caio, a família achou estranho o comportamento possessivo dele. Mas diante da felicidade da filha, que dizia ter encontrado o ‘príncipe da vida dela’ e que era tratada como uma lady, todos aceitaram. O relacionamento começou em agosto de 2024. As fotos mostravam o casal sorridente e aparentemente feliz. Até passaram as festas de fim de ano juntos na casa dos pais dela. O Caio se esforçou para conquistar a família da jornalista. Hoje o irmão de Vanessa revela que a tragédia trouxe à tona o relacionamento abusivo. Caio manipulou, ludibriou e enganou a todos. Dois meses depois de celebrar o Natal em família, a verdadeira face desse músico que se dizia homem de Deus, se revelou. Vanessa sofreu ameaças, foi impedida de sair de casa e viu o quanto Caio estava descontrolado. Decidiu romper o silêncio e o relacionamento e denunciar a violência. Mas nada a protegeu do trágico fim.

casal
Foto do então casal nas redes sociais-

No registro na delegacia, Vanessa contou à polícia que o ex-noivo a expôs na internet publicando fotos íntimas dela e nos últimos dias ela estava sofrendo numa espécie de cárcere privado, era vítima de violência física e psicológica com muitos xingamentos e ameaças. Uma mensagem de áudio que Vanessa enviou para uma amiga quando escapou e decidiu denunciar o ex noivo, ela contou o que estava vivendo nos últimos dias do relacionamento. Vanessa disse:

“Amiga, boa noite, eu jamais imaginaria que eu iria passar por uma exposed desse. Cinco dias de terror que ele ficou enlouquecido. Ele era uma pessoa maravilhosa comigo e de repente o cara virou um monstro.”  

Vanessa revelou que Caio era dependente químico, usava cocaína e bebia muito. “Ficou 5 dias virado cheirando cocaína lá em casa, gastou mil reais com isso da minha conta. Foi esses últimos cinco dias. Ele falou que eu era garota de programa, atriz pornô.” Contou Vanessa no áudio enviado para a amiga.

Assista ao vídeo de Cláudia Gaigher no instagram

O irmão de Vanessa disse que no dia em que foi morta, ela foi duas vezes à delegacia.

“O que a gente sabe é que ela foi na delegacia de madrugada, a medida protetiva foi decretada na parte da tarde, as 15 horas acredito. Foi quando ela voltou na delegacia para ver se o Caio tinha recebido a intimação. Foi nesta hora que minha irmã conversou com a delegada.”

A delegada teria oferecido abrigo na Casa da Mulher Brasileira, mas a jornalista não aceitou, queria ir pra casa retirar os seus pertences. Em vez de apoio, acolhida e proteção, Vanessa se sentiu ainda mais abandonada. Ela relatou a conversa que teve com a delegada em um outro áudio de 4 minutos que enviou para a amiga ao sair da delegacia.

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”Não aconteceu nada, porque assim, eu fui falar com a delegada, fui tentar explicar toda a situação e do jeito que ela me tratou também, bem prolixo, sabe? Bem fria, seca e ela toda hora me cortava assim, eu queria entender, quem que é essa pessoa? Vê o histórico da pessoa e falou para mim que não podia passar o histórico dele, mas que eu já sabia, porque ele mesmo tinha falado de agressões.

Aí eu falei: "Não, que eu queria entender a natureza dessas agressões". Porque ele falou para mim que foi porque a mulher ameaçou a filha dele, enfim. Aí ela falou: "Não, você aí, você não vai falar, eu não vou, não posso te passar isso aí, é sigiloso, sigilo". Sim, parece que tudo protege o cara, né, o agressor. E aí ainda não foi nem mandado, tem que ter um mandado, né, judicial.

Então, hoje, por exemplo, não tem como ele assinar essa medida protetiva e passou aqui o telefone da oficial de justiça, né? Passou a senha do processo para eu ficar consultando. E do boletim de ocorrência, ela falou que não adianta acrescentar, porque não vai mudar muita coisa, porque já foi para o judiciário....

(...)

Eu falei, mas eu preciso voltar para a minha casa, preciso tomar banho, faz dois dias que eu não tomo banho, troco de roupa.

Aí ela disse 'então vai para a sua casa, você já avisou ele, manda uma mensagem falando para deixar a casa'. Então assim, eles não entendem né, a dimensão do negócio. Porque ele já tinha falado para mim que só saía de casa com a polícia. Mas de qualquer forma, eu vou ter que ir lá na casa e vou falar com ele isso aí.

(...)

"Eu estou me sentindo culpada, porque eu fui registrar o BO [boletim de ocorrência]. Eu estou bem impactada com o atendimento da Casa da Mulher Brasileira. Eu que tenho toda a instrução, escolaridade, fui tratada dessa maneira, imagina uma pessoa, uma mulher vulnerável lá. Essas que vão para a estatística do feminicídio"....

Vanessa nem imaginava o que estava por vir. Ela saiu da delegacia acompanhada de um amigo. Apesar da denúncia registrada, dos relatos da violência e ameaças que sofreu, a delegada a “aconselhou” a ir para casa. Não foi designada uma escolta policial para acompanhar a vítima para a retirada dos pertences pessoais. Horas depois, Vanessa foi esfaqueada pelo ex noivo dentro da própria casa. Foram 3 facadas no tórax que atingiram o coração. Vanessa foi socorrida e levada para a Santa Casa de Campo Grande mas não resistiu.

Os pais dela que estavam na estrada, a caminho da capital, não encontraram a filha com vida.

Os familiares sofrem com o sentimento de culpa. “E se os meus pais tivessem chegado à tempo?” “E se a polícia tivesse dado proteção à minha irmã?””E se a gente soubesse que ele estava mantendo ela em cárcere privado?” Perguntas que o irmão disse que todos em casa se fazem desde o assassinato de Vanessa.

“A profissional que atendeu a Vanessa, quando ela pediu apoio, com uma medida protetiva expedida, e a delegada falar: liga pro Caio, vai pra casa. O que nos indigna é ela ter ido pedir apoio e parece que não teve humanidade na tratativa com ela.” Disse Walker.

O governo de Mato Grosso do Sul reconheceu a falha no atendimento e determinou uma sindicância para investigar a forma de tratamento dada à Vanessa na Delegacia da Mulher e ações para melhorar o atendimento ás mulheres vítimas de violência.

O caso repercutiu em todo o Brasil e o Ministério da Mulheres encaminhou um ofício à Corregedoria da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul pedindo uma investigação sobre o atendimento prestado à jornalista Vanessa Ricarte e enviou uma equipe ao estado para acompanhar a situação. Foi publicada uma nota oficial afirmando que “O percurso não poderia ter ocorrido sem a escolta da Patrulha Maria da Penha, de acordo com o protocolo de avaliação de risco para mulheres em situação de violência que orienta o atendimento na Casa da Mulher Brasileira.”

A Associação dos Delegados de Polícia de Mato Grosso do Sul afirmou que “a polícia ofereceu todas as orientações e medidas existentes para a tutela da segurança e a vida da vítima. Que seguiu o protocolo operacional, inclusive, com a orientação de não voltar para casa e permanecer no alojamento da Casa da Mulher Brasileira, sugestão que não foi aceita pela vítima e não pode ser coercitiva”. Mas não esclareceu se foi oferecida escolta à vítima.

O feminicídio de Vanessa Ricarte traz à tona diversas camadas e falhas no enfrentamento à violência contra a mulher. Nas redes sociais, mulheres de todo o país deixaram mensagens. Nas postagens que eu mesma fiz, foram milhares de visualizações e centenas de depoimentos. A maioria, relatos de mulheres que sofreram violência e ao buscar ajuda nas delegacias da mulher, foram recebidas com frieza, descaso ou incredulidade. Muitas disseram inclusive que apesar de serem vítimas, não foram acolhidas. Ainda impera no Brasil a cultura de que a mulher agredida precisa provar que é vítima. O agressor, enquanto isso, permanece livre. A Lei Maria da Penha é ampla, mas não é efetivamente aplicada, e em muitos estados há falhas na rede de apoio necessária para proteger mulheres vítimas de violência e despreparo dos profissionais que atendem essas mulheres.

Sofrer violência vai além do tapa. Os anos de agressões verbais, de manipulação, de violência patrimonial minam a auto estima, a resistência das mulheres. Muitas adoecem, muitas temem denunciar por medo do julgamento de uma sociedade que não olha a mulher como vítima. Julgam as escolhas femininas mantendo um padrão machista em que a mulher é culpada pela violência que sofreu, e não o agressor. A vergonha de denunciar, a falta de apoio, o fato de que os sorrisos escondem dores de alma sem que as pessoas em volta percebam, revela o grau de individualismo e falta de empatia das pessoas que não observam, não conversam, não ouvem as mulheres à sua volta. A rede de apoio para as vítimas de violência doméstica precisa começar a se fortalecer dentro do seu círculo íntimo de convivência. É difícil, eu sei. A mulher vítima de violência esconde a sua dor, maquia as suas marcas e disfarça com sorrisos e silêncios. No caso da Vanessa, muitas pessoas questionaram: “se o Caio Nascimento tinha 13 processos de violência contra mulheres, 6 medidas protetivas expedidos à pedidos das outras vítimas, por que Vanessa namorava com ele?” Como se ela fosse a culpada pela escolha. O fato é que a mulher é a vítima. O algoz, se tinha tantos processos e tantas denúncias de violência contra mulheres feitas em anos anteriores, por que estava solto? Por que a justiça não fez a sua parte punindo um agressor como essa ficha? Essas são as perguntas que precisam ser feitas. Esperamos as respostas.

O assassino Caio Nascimento está preso.

*Claudia Gaigher é jornalista em Campo Grande, MS.