Mariana Kotscho
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PL 1904: vamos responder à violência com inteligência

Criança não é mãe e estuprador não é pai. Violência com retrocesso ameaça a liberdade das mulheres no Brasil

Coalizão Nacional de Mulheres* Publicado em 17/06/2024, às 11h08

Meninas são vítimas de estupro no Brasil
Meninas são vítimas de estupro no Brasil

A direita brasileira está trabalhando em prol da descriminalização total do aborto, mas os cidadãos de bem que apoiam suas pautas não perceberam isso. Ao criar um Projeto de Lei que beneficia estupradores e pune vítimas de violência sexual, em especial as crianças, os parlamentares na verdade estão oferecendo a possibilidade de levar o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos para questionar a criação dessa legislação, sob a alegação de que ela afronta os Tratados Internacionais que protegem os direitos das mulheres dos quais o nosso país é signatário. A denúncia e eventual condenação do país por descumprir os Tratados, fará com que o Brasil legisle a favor da descriminalização do aborto.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – Convenção CEDAW da ONU, de 1979, ratificada pelo Brasil em 1984, a Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994 e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995, são documentos internacionais ratificados pelo Brasil nos quais o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar o direito de autodeterminação reprodutiva das mulheres. Ou seja, se o Brasil tem o dever de proteger legalmente o direito de as mulheres escolherem o que podem fazer com seu corpo, consequentemente, não há como o Estado manter na legislação o aborto como um crime.

É de se destacar que a última recomendação da ONU ao Brasil no CEDAW, ocorrido em Genebra, em maio de 2024, foi a seguinte:

  1. Em consonância com a recomendação geral nº 24 (1999) sobre mulheres e saúde e as metas 3.1 e 3.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, para reduzir a mortalidade materna global e garantir o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, o Comitê recomenda que o Estado-parte: 
  2. a) Legalizar o aborto e descriminalizá-lo em todos os casos e garantir que mulheres e meninas tenham acesso adequado ao aborto seguro e aos serviços pós-aborto para garantir a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos; 

Esse debate se mantinha restrito aos círculos da esquerda. Mas, ao tentar negar garantias estabelecidas há mais de 80 anos às mulheres, considerando que o direito ao aborto em casos específicos está previsto no Código Penal desde 1940, os parlamentares conservadores poderão colher como consequência, ao invés do retrocesso almejado, um importante avanço da pauta relacionada ao aborto. Tal como em um efeito “estilingue”, cada ação alcança uma reação à altura, o PL proposto almeja algo tão absurdamente violento contra as mulheres que caberá reagir através de todos os mecanismos possíveis e essas medidas poderão mudar o rumo da história dos direitos das mulheres no Brasil.

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É essencial desmitificar o PL 1904/24.  A proposta é puramente politiqueira, não tem como foco proteger a vida, mas sim promover alguns parlamentares que estão tentando se beneficiar dessa discussão a custa de iludir as pessoas com um discurso moralista falacioso, que não irá cumprir com o que promete. Eles sabem disso, mas estão fazendo esse show para que o público acredite que há um desejo genuíno de tornar a sociedade mais conservadora, entretanto, como foi explicado aqui, o efeito poderá ser totalmente o inverso.

Os parlamentares sabem que a proposta é inconstitucional e que, portanto, a lei poderá facilmente ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Mas estão apresentando a proposta mesmo assim apenas para fazer uma parte da população acreditar que o projeto trará algum tipo de avanço sob o ponto de vista conservador, contudo, a verdade é que estão construindo a possibilidade ideal para proporcionar exatamente o contrário, viabilizar a institucionalização da principal pauta progressista que é a descriminalização absoluta e irrestrita do aborto em nosso país.

O PL já proporcionou algo muito valioso, trazer para a mídia aberta a tão temida discussão sobre o aborto. As pessoas estão falando a respeito dessa pauta e os debates ainda que, inicialmente, estejam ocorrendo dentro de cada bolha ideológica, a ampliação é inevitável. Os diálogos estão tomando as redes sociais e as ruas, fazendo com que os pontos de vista antagônicos sejam confrontados por dados. Esses embates levarão à análise da pauta de uma forma mais aprofundada pela sociedade. Algo que até então se demonstrava impossível.

Falar sobre a possibilidade ou não de interromper uma gravidez de uma vítima de estupro trouxe à tona informações que sociedade até então não fazia ideia, tais como: 68,3% dos estupros acontecem em casa, sendo que quando a vítima é uma criança, uma pessoa com deficiência ou alguém que por algum motivo não consiga se defender ou autodeterminar este número sobe para 71, 6%. A estimativa oficial é que, por dia, ocorram de 822 a 1370 estupros em nosso país. E é preciso dizer que estes números mesmo sendo altíssimos não retratam fielmente a realidade porque muitos casos de violência sexual não são denunciados.

O preconceito que povoa o senso comum faz algumas pessoas acreditarem que estupros acontecem, em sua maioria, em locais como bailes funks ou, à noite, em razão da vítima estar com algum tipo de roupa provocante. Essas ideias são lendas urbanas. Os dados comprovam que a casa e ambientes religiosos são os locais mais inseguros para mulheres e crianças em nosso país. (Pesquise no google “líder religioso estupro” e veja os resultados.)

A população precisava saber disso. Talvez agora as pessoas compreendam por que é essencial que nas escolas as crianças sejam alertadas a respeito do que é o abuso sexual. Educação sexual não é sobre ensinar crianças a fazer sexo, mas sim explicar à criança onde pessoas adultas não podem tocar em seu corpo. Com essas informações, meninas e meninos têm condições de identificar quando estão sofrendo algum tipo de violência e, assim, conseguem denunciar os abusadores.

A sociedade está se conscientizando de que esse projeto de lei afeta de forma muito cruel, violenta e desumana a vida, em especial, das crianças vítimas de estupro. Violência se combate com inteligência. A tentativa de redução de direitos poderá ensejar a ampliação dos direitos das mulheres, tudo graças à direita conservadora que trouxe à sociedade o debate sobre o aborto com base em uma proposta tão grotescamente descabida que acabará por gerar o efeito inverso.

Quanto maior a luta, maior será a vitória! E ela virá com a ampliação dos direitos das mulheres e meninas brasileiras, não os dos estupradores.

* Coalizão Nacional de Mulheres – movimento que reúne as lideranças feministas de todo o Brasil. Siga @coalizão_nacional_de_mulheres