Ève divide com os leitores a dor por ter perdido sua filha Nina no momento do parto. Uma história de envolve erro médico e violência obstétrica
Ève S.* Publicado em 24/01/2023, às 06h00
Me chamo Ève, sou francesa e moro no Brasil há 16 anos. Quando eu tinha 23 anos, eu fazia um intercâmbio em Toronto, no Canadá. Na época, queria me formar em jornalismo e precisava falar inglês fluente para prosseguir nos estudos. Acabei me apaixonando por um brasileiro e, apesar de não saber absolutamente nada sobre o Brasil, a cultura do país e sua língua, eu segui este brasileiro, que ia se tornar meu marido, até Porto Alegre - com toda a certeza que era a melhor escolha da minha vida. E foi. Mergulhei num país incrivelmente lindo no qual eu me identifiquei totalmente e nunca mais quis voltar para a França.
Em 2009, ganhamos nossa primeira filha e logo em seguida, tomamos a decisão de nos mudar para São Paulo. As oportunidades de trabalho eram melhores para nós e estávamos empolgados com a idéia de morar na maior cidade da América Latina. Logo em seguida, em 2011, nasceu nossa segunda filha e, nesta época, posso dizer que me senti plenamente realizada.
Em 2014, meu então marido sofreu um AVC, um evento raro de acontecer para uma pessoa com 35 anos de idade, que nunca fumou e bebia muito pouco. O susto foi enorme, mas ele se recuperou bem, apesar de ter algumas sequelas. Esse acidente mexeu muito com nosso relacionamento, nossa vida de casal, nosso equilíbrio. Infelizmente, não conseguimos superar isso e acabamos nos divorciando.
A partir deste momento, minha vida tomou um outro rumo: eu aprendi a me virar sozinha, tomar conta da casa, me organizar da melhor forma possível para lidar com o trabalho, conseguir pagar as faturas sem depender de ninguém e manter uma rotina saudável para minhas filhas. Posso dizer que não foi nada fácil e muitas vezes senti falta de um companheiro, alguém ao meu lado para simplesmente me dizer que ficaria tudo bem.
Em 2019, acabei encontrando um rapaz. Ele era muito simpático e se expressava com facilidade e leveza. Nós nos vimos outras vezes e iniciamos um relacionamento. Estava solteira há muito tempo e o meu encontro com ele me parecia uma chance de construir algo sério com alguém.
Eu engravidei muito rapidamente e essa notícia foi acolhida com bastante felicidade na família. Minhas filhas estavam empolgadas com a ideia de ter uma irmã (era uma menina) e meu companheiro ia se tornar pai pela primeira vez.
Logo no inicio da minha gravidez, comecei a me preocupar com meu parto. De fato, sempre quis fazer um parto natural, me sentir no comando do meu corpo, viver esse momento cheio de emoções onde você abraça o ritmo da natureza. Minhas duas filhas tinham nascido de cesária e nunca soube até que ponto elas realmente foram necessárias. Sei como é difícil no Brasil conseguir obstetras que topam acompanhar uma gestante nessa aventura e os que achei queriam cobrar um valor muito acima do que eu podia pagar na época.
Após muitas pesquisas e conversas com médicos, entrei em contato com um coletivo que realiza partos humanizados em São Paulo e cujo o contato foi me passado por minha professora de Ioga. Eu mandei um e-mail com meu histórico, minha situação, perguntando sobre os riscos. Eles se mostraram muitos confiantes, me assegurando que ter uma ruptura uterina é ume evento muito raro, ainda mais quando se passaram tantos anos após da ultima cesária, e que eles já tinham realizado partos naturais de mulheres com os mesmos antecedentes e que nunca tinha acontecido nada.
Me desloquei até eles para conversar com a equipe pessoalmente e conhecer o lugar. Me senti confiante e tranquilizada, pois a equipe parecia preparada. A única coisa que eu estranhei foram os encontros no coletivo. Nós tínhamos apenas 5 minutos de consulta com uma obstetra e o restante do encontro era um bate papo com outras mulheres grávidas.
Minha gravidez foi muito tranquila. Nina era um bebê saudável e cheio de vida. Todas as noites, minhas filhas cantavam músicas para ela, contavam histórias e Nina reagia ao som da voz delas.
No último mês de gravidez, em fevereiro, comecei a sentir muita dor na barriga. As vezes, era tão forte que não conseguia mexer. Escrevi para o coletivo para saber o que podia ser feito e eles me aconselharam de ir no hospital. No dia seguinte dos meus 38 anos, eu fui lá e fiz alguns exames. Eu estava com enjôo, contrações irregulares, pressão alta e minha dor só aumentava. Queria entender porque meu corpo estava tão dolorido mas ninguém do hospital nem do coletivo tentou aprofundar a questão para entender melhor o que estava acontecendo e voltei para minha casa sem resposta. Por causa desta dor, eu não podia me deslocar até o local do coletivo (era muito longe da minha casa) e minha única opção era voltar ao pronto socorro do hospital que possivelmente não me internaria. Dois dias depois, voltei pro pronto socorro me queixando novamente de dores, mas eu fui mandada para casa mais uma vez sem qualquer apoio.
No dia 20 de fevereiro, com 40 semanas de gravidez, liguei para minha doula. No final da tarde, ela me levou ao pronto socorro do hospital de Uber pois minha dor era insuportável. No trajeto, eu me lembro que cada contração me deixava paralisada e eu só conseguia articular a palavra “analgesia”. A equipe do Coletivo me encontrou no pronto socorro 10 minutos depois (o hospital tinha chamado eles) e me avaliou. Eu tinha apenas 2 centímetros de dilatação apesar da minha dor intensa. Era como se minha barriga estivesse se abrindo aos poucos ou que alguém enfiasse facas em mim. Num momento fui levada para uma sala para fazer a cardiotocografia (avaliação cardíaca) da Nina. Eu já não podia mais caminhar e mal abria os olhos. Parecia que ninguém ao meu redor me levava a sério.
Durante o exame, a obstetra do coletivo e a obstetriz de plantão, que trabalha também com o coletivo, não falaram comigo. As duas estavam olhando o celular enquanto minha doula tentava acalmar a dor fazendo massagem nas minhas costas. Nesse momento, posso dizer que me senti muito só. A dor irradiava meu corpo por inteiro e não tinha força nem para chorar. Após a cardiotocografia, fui levada na sala de parto onde fui colocada em baixo de um chuveiro. Meu estado estava alterado por causa do sofrimento, mesmo assim, consigo me lembrar muito bem de ver o sangue escorrer entre minhas pernas.
A obstetriz deduziu que minha bolsa tinha rompido mas no fundo eu sabia que algo estava profundamente errado. A obstetra tentou ouvir o coração da Nina mas ele batia muito fraco. Fui levada às pressas para o bloco cirúrgico e, de repente, a sala ficou cheia de pessoas. Parecia um formigueiro desorganizado. O anestesista tentou colocar um acesso endovenoso no meu braço que foi arrancado por uma enfermeira apressada que não viu o fio. Eu vi meu braço começar a sangrar mas já não sentia mais dor. Por causa dessa desorganização geral, a minha cesária demorou bastante para ser realizada, um tempo que já condenava minha filha.
Meu companheiro não estava na sala comigo. Fiquei sabendo que, nesse meio tempo, a doula tinha solicitado a liberação urgente do meu companheiro para ele entrar no bloco cirúrgico, explicando o que estava acontecendo, mas o hospital não quis acelerar o processo e demorou muito tempo para deixá-lo entrar.
Quando ele entrou no bloco com a doula, eu estava deitada. A anestesia tinha acabado de ser realizada e antes mesmo de fazer o efeito completo a obstetra já estava abrindo minha barriga. Neste instante, eu senti que minha vida ia mudar para sempre. Estava vivendo um verdadeiro pesadelo do qual eu queria acordar. Eles tiraram minha filha que estava muito pálida e tentaram reanimá-la enquanto a obstetra costurava meu útero, que havia rompido.
Eu podia ver a equipe do hospital fazendo uma massagem cardíaca na Nina, injetando adrenalina. Meu companheiro rezava na sala enquanto eu afundava ainda mais em tristeza. Eu sabia. Eu sabia que nunca escutaria a voz da minha filha, nunca teria a chance de vê-la crescer, rir e chorar. Os 9 meses anteriores, de felicidade, me foram tirados de maneira brutal. Após 12 longos minutos, o coração da Nina voltou a bater mas ela estava em coma profundo. Ela foi levada para a UTI enquanto o hospital me colocou num quarto junto a uma mulher que festejava a vinda do seu bebê com familiares. Eu parecia uma sombra, sentada na beira da cama, o olhar voltado a parede para ninguém ver minhas lágrimas.
Os dias seguintes foram devastadores. Após 2 dias no quarto, fazendo idas e voltas na UTI para ficar perto da Nina, que respirava com aparelhos, o hospital me notificou que eu tinha que liberar o quarto. Meu estado de saúde não estava bom, sentia muita dor e cansaço e ninguém estava atento com minha saúde. Também não recebi nenhum apoio da parte do coletivo como eu precisava naquele momento. Escrevi uma mensagem para a responsável solicitando um encontro e quando ela se deslocou até o hospital, foi para me dizer que infelizmente não tinha como prever a ruptura uterina e que foi uma fatalidade. Eu me sentia fraca e desamparada e as palavras dela só aumentaram o buraco que já tinha se formado dentro de mim.
Meu companheiro e eu passamos os dias seguintes na UTI, sentados em poltronas, ao lado da Nina. Passávamos os dias e as noites a falar com ela, fazer carinhos nas pernas dela, observando com angústia a linha que aparecia constantemente reta na tela do aparelho para medir atividade cerebral. Nós não dormíamos e não comíamos. Eu ia me lavar no banheiro no corredor, ao lado da UTI. Nem absorventes o hospital me ofereceu, eu ainda sangrava bastante.
Três colegas de trabalho ouviram falar sobre o que estava acontecendo, se deslocaram até o hospital e ficaram bastante preocupadas com meu estado de saúde. Conseguiram obter uma consulta no pronto socorro do mesmo hospital. A enfermeira que me recebeu ficou muito chocada de me ver assim, sem um acompanhamento decente. Ela me receitou analgésicos para dores e se mostrou muito tocada com minha história.
No dia 29 de fevereiro, nove dias após o parto, tomei a decisão de desligar as máquinas que mantinham minha filha “viva”. Os exames do cérebro da Nina tinham mostrado que a atividade era nula e que ela não acordaria. Os rins dela, assim como outros órgãos, começavam a falir. Peguei ela nos meus braços, olhei bastante para ela, me desculpei, chorei, abracei ela e a deixei ir embora. Senti seu corpo ficar gelado entre meus braços mas o rosto dela expressava paz. Ela foi levada para a câmara fria no subsolo do hospital onde o serviço funerário buscou-a, colocou-a num caixão e levou-a para uma funerária de São Paulo. Naquele momento, pensei que eu queria ter morrido junto com ela. Queria me livrar do sofrimento que ficava cada vez pior. Parecia que eu estava sendo aspirada por um buraco negro, um túnel preto sem fim, no qual não podia me extrair.
Chegamos no crematório de São Paulo. Eu mal conseguia respirar. Queria gritar, cair no chão e nunca mais levantar. Ao entrar na sala onde estava o caixão, o serviço do crematório notificou que teríamos apenas 5 minutos para nos despedir da Nina pois um grupo de pessoas já estava esperando para se despedir de um parente na mesma sala. Não fazia sentido deixar minha filha naquele lugar e nunca mais vê-la. Ela parecia dormir.
Coloquei no caixão uma carta que eu tinha escrito para ela e deixei entre os braços dela meu ursinho de pelúcia que sempre guardei comigo desde da infância. Uma moça chegou, pediu desculpa com emoção e fechou o caixão que começou a descer. Não tinha volta. Não tinha mais vida, risadas, felicidade, esperança. Eu era ninguém. Eu era nada.
Demorei bastante para recomeçar a viver. Foi uma luta intensa entre altos e baixos. Meu relacionamento com o pai da Nina não se sustentou e tive que me afastar do Brasil para iniciar um processo de cura. Voltei para a França para perto da minha família, estudei bastante para ocupar minha mente, passei num concurso, cheguei em segundo lugar e virei funcionária pública, mas acabei me demitindo porque me sentia muito vulnerável. Naquela época, sofria crises de pânico, mal conseguia sair de casa e vivia com medo da morte.
O primeiro passo para esta cura foi a cirurgia de reconstrução do útero, que eu fiz com uma equipe de médicos maravilhosos na cidade de Nantes, na França. Essa cirurgia representava a possibilidade de me sentir inteira, de reconstruir a ligação que eu tinha perdido com meu corpo. Ele me dava nojo e não queria mais olhar para ele. O outro passo foi o de iniciar uma terapia EMDR, com uma médica sensacional que me permitiu deixar sair de mim toda a angústia, a raiva, a frustração que eu carregava e que estava me destruindo. Eu tive que tomar remédios para acalmar as crises de pânico e comecei a me impor um ritmo de 2 horas de bicicleta por dia na natureza.
Após de um ano e meio, comecei a me sentir melhor e assim, voltei para o Brasil, na minha casa. Retomei meu emprego, que eu tinha deixado, mudei a decoração da casa, me livrei das coisas de bebê e foquei no mais importante: minhas filhas.
Hoje, eu refiz a minha vida com uma pessoa incrível que aceitou meu caminho de vida e que sempre me apoiou. Sete meses atrás, descobrimos com muita emoção que íamos ter um bebê, uma menina. Estou sendo acompanhada por médicos extraordinários, especializados em gravidez de risco e minha cesárea será num excelente hospital, que já está ciente do meu histórico.
A dor continua intensa, mas se manifesta de um jeito diferente: eu quero ser uma pessoa melhor, cultivar os pequenos momentos do cotidiano, valorizar o presente sem grandes expectativas. As cinzas da Nina estão no meu quarto, não me sinto pronta para me desfazer delas ainda. Penso na minha filha todos os dias. Isso me traz força para continuar a viver, poder contar nossa história e batalhar para que isso não aconteça com outras mulheres, que não coloquem suas vidas e nem a de seus filhos em risco confiando em médicos que não são preparados para lidar com situações de risco.
Nota da redação: Querida Ève, obrigada por dividir conosco sua história e te desejamos tudo de melhor: a você e toda sua família.
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