Projetos corporativos de educação e flexibilização mostram que o ambiente de trabalho pode ser decisivo para a permanência de mães atípicas no emprego
Lina Santiago (Redação) Publicado em 18/12/2025, às 06h00
A rotina de mães e pais de crianças atípicas costuma ser marcada por agendas cheias, deslocamentos constantes para terapias e consultas, insegurança financeira e, muitas vezes, medo de perder o emprego por não conseguir conciliar trabalho e cuidado. No Brasil, onde o apoio público ainda é insuficiente e desigual, a sobrecarga recai especialmente sobre as mulheres, que seguem sendo as principais responsáveis pelo acompanhamento dos filhos. Nesse cenário, iniciativas vindas do mundo do trabalho podem representar um divisor de águas na vida dessas famílias.
Em Lins, no interior de São Paulo, um programa interno de uma indústria do setor de calçados de segurança tem mostrado como políticas corporativas podem gerar impactos concretos para além da produtividade. O Alfabetiza Bracol, criado em 2024, oferece acompanhamento pedagógico especializado a crianças atípicas, filhas e filhos de colaboradores, com foco no processo de alfabetização. Atualmente, dez crianças participam do projeto, que completou um ano em outubro de 2025.
O programa é conduzido pela neuropsicopedagoga Luciana Zinader, especialista em alfabetização de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento, como autismo, síndrome de Down, TDAH e dislexia. O acompanhamento é individualizado e envolve materiais adaptados, orientações constantes às famílias e um trabalho contínuo de estímulo cognitivo. “Não existe um método único. Cada criança tem um ritmo, uma necessidade e uma forma de aprender. O envolvimento da família é fundamental para que o desenvolvimento aconteça”, explica a profissional.
O Alfabetiza está ligado ao Programa de Apoio a Colaboradores com Filhos Atípicos, que hoje atende 20 famílias. Além do suporte educacional, o programa oferece um auxílio financeiro mensal equivalente a 20% do piso salarial e flexibilidade de horários para que mães e pais possam acompanhar terapias e atendimentos especializados durante a jornada de trabalho.
Segundo Thiago Honório, gerente de Recursos Humanos da Bracol, o programa nasceu da percepção de uma necessidade concreta. “Quando você convive de perto com a realidade de uma criança atípica, entende que o tempo e o custo das terapias são determinantes para o desenvolvimento. Sem apoio, muitas mães acabam deixando o mercado de trabalho”, afirma. Ele próprio é pai de uma criança com transtorno do espectro autista, o que ajudou a ampliar o olhar para o tema dentro da empresa.
Mas talvez o aspecto mais significativo não seja apenas o auxílio financeiro ou a flexibilização formal de horários, e sim a construção de uma cultura interna de empatia. Na prática, colegas de trabalho compreendem as ausências para terapias e consultas, e gestores não tratam essas saídas como falta de comprometimento profissional. “Isso muda tudo”, resume Kelly Cristina Fernandes, colaboradora da empresa e mãe solo de três filhos, sendo um deles autista.
Ela relata que já havia sido desligada de um emprego anterior por não conseguir conciliar trabalho e a rotina de cuidados do filho. “Aqui, eu encontrei acolhimento. Saber que posso cuidar do meu filho sem medo de perder o emprego me deu estabilidade emocional. Isso reflete diretamente na forma como eu trabalho”, conta.
Além do apoio a famílias atípicas, a empresa mantém outros dois projetos educacionais: o auxílio material escolar e creche, que beneficia 222 colaboradores com suporte financeiro no início do ano letivo, e o programa de integração escolar de filhos de até 7 anos, que atende 367 famílias e permite que mães acompanhem o período de adaptação das crianças à escola.
Em um país onde a maternidade atípica ainda é atravessada por isolamento, culpa e insegurança profissional, experiências como essa ajudam a reposicionar o papel das empresas na vida social. Trata-se do reconhecimento de que trabalhadores não deixam seus desafios pessoais do lado de fora do portão da empresa.
Ao criar condições reais para que mães atípicas trabalhem com mais tranquilidade, iniciativas assim não apenas retêm talentos, mas contribuem para uma sociedade mais justa, empática e inclusiva.
Quer incentivar este jornalismo sério e independente? Você pode patrocinar uma coluna ou o site como um todo. Entre em contato com o site clicando aqui.
Neurodiversidade, inclusão e futuro: o desafio de construir uma escola e uma sociedade para todos
Abril Azul: 10 dicas com especialistas para apoiar e incluir pessoas autistas
A mãe que me tornei
Por que a pessoa com deficiência segue fora do mercado de trabalho?
Dia Internacional da Síndrome de Down: conquistas e desafios na jornada da inclusão