A colaboradora Damaris Gomes Maranhão comenta sobre a história das educação primária e seus principais obstáculos enfrentados no decorrer das décadas
Damaris G. Maranhão Publicado em 29/03/2023, às 06h00
A partir da Revolução Industrial, as empresas passaram a empregar mulheres visando aumentar a mão de obra, e, assim, instalaram as primeiras creches. Atendiam em período integral crianças menores de seis anos de idade, mas ainda sem um projeto pedagógico, mantendo os bebês restritos aos cercadinhos, berços, cadeirões, desconsiderando a importância do movimento, brincadeiras, interações que permeiam os cuidados. A partir de 1930, Oswald de Andrade propõe os Parques Infantis, visando a ampliação cultural das crianças maiores de quatro anos oriundas de famílias da classe operária paulista.
Um editorial publicado recentemente na Folha de São Paulo com o título "Educar e Cuidar desde o Berço", empregou termos higienismo e assistência, criticando os objetivos das primeiras creches. O termo “higienismo” origina-se de Hygeia, deusa da saúde, assim como “assistência” era empregado tanto para o suporte social às famílias como a atenção à saúde. Estes termos são interpretados de forma crítica pelos profissionais da educação devido sua perspectiva compensatória e não com base no conhecimento atual sobre as aprendizagens das crianças desde o nascimento.
As primeiras creches públicas municipais de São Paulo foram implantadas nas periferias e tinham como público alvo as crianças oriundas de classes sociais mais pobres (assistência social) e, portanto, com maior risco de desnutrição e mortalidade infantil (prevenção de doenças).
No início da década de 1970 foi implantado em São Paulo o Projeto Centros Infantis[1], administrado pela Secretaria Municipal de Bem Estar Social, com uma proposta de educação compensatória para os mais pobres, enquanto a Secretaria Municipal de Educação era responsável pelos “jardins da infância ou pré-escolas”. Assim há uma clara separação de concepções, organização e valorização dos serviços que são responsáveis pelo cuidado que é inerente à educação das crianças desde o nascimento, seja no âmbito familiar, das escolas, serviços sociais ou de saúde.
Essa desvalorização das atitudes e procedimentos de cuidado com as crianças pode ser decorrente do fato de ter sido desenvolvido pelas mulheres. Mas é hora de ressignificarmos a importância dos cuidados integrados à educação de crianças e jovens, como um elo que requer interdisciplinaridade de conhecimentos científicos atualizados, além do reconhecimento de que esta é uma tarefa de toda sociedade.
Em 1979 ocorre o primeiro Congresso da Mulher Paulista onde emerge o movimento Luta por Creches, partindo do pressuposto que o cuidado e educação infantil é tarefa de todos. Este movimento culmina no reconhecimento na Constituição de 1988 do direito de todas as crianças à educação infantil assim como de todos os trabalhadores em compartilhar o cuidado/educação dos filhos. Na legislação infraconstitucional delimitou-se o atendimento conforme a faixa etária: as creches de 0 a 3 anos e 11 meses e as pré-escola entre 4 e 6 anos mas ambas incorporadas ao sistema de Educação Básica. Da mesma forma o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, 1996 e os Planos Nacional da Educação (PNE, 2001, 2014) reconhecem o direito de todas as crianças à Educação Infantil que congrega creches e pré-escolas. No Plano de 2001 a 2011, a meta era ampliar a oferta de creches, de forma a cobrir pelo menos 50% da demanda, o que não foi alcançado, permanecendo a mesma meta para o plano de 2014 a 2024.
As mudanças de denominações e na organização das escolas de educação infantil talvez não seja ainda compreendida pelos familiares, profissionais de diferentes áreas e pela mídia, o que ficou evidente durante a pandemia quando o setor saúde elaborou protocolos para os serviços educacionais de forma genérica. Da mesma forma os diferentes termos para designar os serviços educacionais em cada município ou rede privada pode confundir os familiares ou profissionais de diferentes campos. Dependendo do município e se mantidos pela rede pública ou privada as creches podem ser denominadas, como na cidade de São Paulo, Centros de Educação Infantil (CEI) enquanto as pré-escolas são Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI). Mas como podem variar conforme o município e estado, os termos podem confundir os usuários, profissionais e mesmo pesquisadores. Na rede privada é comum os termos Berçários e Escola de Educação Infantil.
Esta confusão pode ocorrer também nas normativas de controle de qualidade desses serviços, como na exigência de metros quadrado de área interna por criança menor de dois anos, que segundo a Portaria 321 de 1988, do Ministério da Saúde, precisa ter no mínimo 2, 5 metros quadrados por criança, enquanto no documento do MEC há exigência de 1,5 metro quadrado por criança sem considerar as diferentes necessidades etárias. Temos ainda outros problemas relativos à arquitetura, com erros no planejamento e construção de pias para crianças higienizarem as mão, desconsiderando o tamanho da envergadura dos braços dos menores, apenas sua altura.
Há também problemas relativos aos cuidar e educar devido ausência de pias nas salas e ao lado dos trocadores, que são fundamentais para higiene das mãos dos professores e crianças, assim como a falta de acesso direto às áreas externas. As salas para os chamados “bebês”, ou lactentes, podem estar situadas no andar superior, um modelo ultrapassado, que dificulta o acesso de pais e professores, mas que infelizmente foi adotado no primeiro projeto dos Centros Unificados de Educação da cidade de São Paulo.
Outro debate é entre a idade inicial de frequência do lactente pois depende da relação de trabalho dos pais, se é um trabalhador novo na empresa ou em retorno da licença maternidade ou paternidade. Devido a alta demanda da rede pública as mães às vezes não tem opção de aguardar caso estejam ainda de licença maternidade mas são agendadas as matriculas de acordo com a lista de espera de vaga. Há um crescente aumento das matrículas de lactentes menores de 120 dias de vida.
Há também diferenças importantes relativas à razão professor/criança conforme faixa etária, relacionada às demandas de cuidados expressas por cada criança e do grupo como um todo. Os indicadores internacionais recomendam uma razão no máximo de 5:1 para menores de dois anos, mas na cidade de São Paulo os CEIs prevê 7:1 até 8 meses, 9:1 dos 9 aos 18 meses; 12:1 entre 19 e 24 meses e 15:1 até 3 anos e 11 meses. Este fato leva a uma sobrecarga do professor e uma diminuição da qualidade do cuidado, mas também está relacionada ao custo do serviço público e privado. Na rede privada embora a proporção possa ser mais adequada, muitas vezes pode-se delegar os momentos de troca de fraldas, ida ao sanitário, alimentação às categorias profissionais menos qualificadas e menor remunerada como “cuidadores” ou auxiliares técnicos de educação, o que pode comprometer a integração cuidar e educar tão reconhecida em pesquisas e documentos publicados.
Mesmo quando os professores são responsáveis pelo cuidar e educar, nem sempre eles estão atualizados com base nos conhecimentos do campo das ciências da saúde e podem se apoiar apenas na cultura institucional ou no senso comum, uma vez que nem todo curso de pedagogia aprofunda as atitudes e procedimentos de cuidados no contexto de educação infantil. As falhas no processo de cuidado nos serviços de educação infantil pode aumentar o risco de acidentes, surtos de doenças transmissíveis, mordidas entre bebês, conflitos entre pais e professores e demandas aos serviços de saúde. Isto pode levar a não recomendação pelos pediatras de frequência de bebês nas creches. Mas na verdade tanto profissionais de saúde como de educação precisariam pesquisar mais os indicadores de qualidade dos cuidados articulados ao ato educativo para aprimorá-los no contexto coletivo.
[1] Trabalhei entre 1973 a 1975 no Projeto Centros Infantis. Entre 1980 até 1987 fui supervisora dos Centros Infantis nos bairros do Ipiranga e Santo Amaro. Entre 1987 e 1990 participei do planejamento, implantação e supervisão do Programa Creches e Pré-Escolas do Estado de São Paulo. A partir de 1990 da formação de profissionais na ONG Crecheplan, atual Instituto Avisalá. Em 1988 da equipe de elaboração do Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil, em 2010 das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil e em 2015 da Base Curricular Nacional da Educação Infantil, documentos oficiais do MEC que reconhecem o cuidado como inerente a ação educacional dos menores de seis anos.
*Damaris Gomes Maranhão é enfermeira Especialista em Saúde Pública UNIFESP/USP, Dra em Ciências da Saúde pela UNIFESP, Professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, Consultora do CEDUC e Formadora no Instituto Avisalá, Mãe do Bruno e da Melissa, avó da Clara e do Pedro.
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