Temperamento: os desafios do relacionamento entre pais e filhos

Explore o temperamento infantil e como ele impacta a adaptação das crianças a diferentes ambientes

Guilherme de Abreu* Publicado em 06/02/2025, às 06h00

É importante adotar métodos pedagógicos que respeitam diferentes temperamentos -

Quem lida com crianças frequentemente encontra algumas que, devido a características de personalidade que acabam refletindo em seu comportamento, são mais desafiadoras de se conduzir. Quem nunca presenciou adultos enfrentando dificuldades ao lidar com uma criança sob sua responsabilidade? O temperamento infantil é uma característica intrínseca que desempenha um papel significativo no comportamento e nas interações sociais das crianças. Entre características variadas, o "temperamento difícil" se destaca por apresentar desafios únicos tanto para os pequenos quanto para seus cuidadores. 

As características de personalidade e temperamento são extremamente variadas, e nenhuma criança precisa, necessariamente, se encaixar em um padrão para ser considerada ajustada à sociedade. No entanto, embora essas características sejam naturais e dependam de uma série de variáveis, elas podem se tornar fonte de tensão e frustração no ambiente familiar, escolar e social de maneira ampla. Fatores como idade, estilo de criação e educação, estágio de desenvolvimento emocional, aspectos culturais e até mesmo a forma como pais interagem com momentos mais desafiadores ao longo dos anos podem influenciar a personalidade de crianças.

Para definirmos uma criança como “difícil” é necessário que seus traços de personalidade realmente gerem problemas  em sua criação e nos processos educacionais. Embora essa definição possa parecer vaga, ela destaca dois aspectos fundamentais: essas características são inerentes à criança e devem ter um impacto profundo no seu dia a dia. O relacionamento entre pais e filhos, em especial, pode ser afetado, exigindo estratégias específicas para promover uma convivência harmoniosa e um desenvolvimento saudável.

Neste artigo, exploraremos os múltiplos aspectos que envolvem o temperamento difícil, desde suas bases psicológicas e neurológicas até os fatores socioculturais que influenciam seu manejo. Nosso objetivo é fornecer uma visão abrangente e acessível para ajudar famílias e educadores a enfrentar esses desafios de maneira eficaz.

Primeiramente, é essencial diferenciar personalidade de temperamento. O temperamento infantil ganhou destaque graças aos estudos da psiquiatra infantil Stella Chess e de seu marido, Alexander Thomas, na metade do século passado. Eles concluíram que temperamento é o conjunto de características inatas que formam a base da personalidade de uma pessoa. Em outras palavras, uma criança nasce com traços que, somados às suas experiências de vida, darão forma à sua personalidade.

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A análise de Chess e Thomas considerou que o comportamento infantil refere-se a três aspectos principais:

1.) Habilidades: Relacionam-se à capacidade da criança de realizar atividades. São um aspecto do "o quê" a criança pode fazer, englobando talentos e diversas frentes de desenvolvimento, como o motor e o cognitivo.

2.) Motivação: Refere-se às razões pelas quais as crianças agem, envolvendo o "porquê" de suas ações ou inações e seu nível de envolvimento ou engajamento com essas atividades.

3.) Temperamento: Refere-se ao estilo, ou o "como" do comportamento, ou seja, como as crianças executam suas funções.

Esses pilares do comportamento infantil influenciam significativamente o relacionamento com pais, cuidadores e educadores, destacando as diferenças individuais que direcionam intensamente essas relações. Portanto, além das metodologias educacionais, é crucial observar as características de estilo de interação.

Compreendendo essas bases do comportamento, podemos avançar para um segundo aspecto importante: os traços de temperamento. Esses traços são elementos do temperamento que podem ser observados e medidos:

1.) Tolerância sensorial: O limite suportável a estímulos sensoriais como som, temperatura, luz e odores.

2.) Intensidade de resposta: O nível de energia empregado em resposta a estímulos.

3.) Nível de atividade: A quantidade habitual de movimentação em atividades diárias, como brincar, comer ou dormir.

4.) Adaptabilidade: Tolerância a mudanças e a facilidade de adaptação.

5.) Autocontrole: Capacidade de modular emoções, ações e desejos.

6.) Concentração: Habilidade de manter o foco diante de estímulos externos e distrações.

7.) Ritmicidade: Regularidade e previsibilidade de funções como apetite e ritmo circadiano.

8.) Persistência/perseverança: Intensidade de obstinação em ideias e vontades, tanto no aspecto positivo do “engajamento” como no negativo da “teimosia”. 

9.) Humor predominante: Qualidade habitual do humor e disposição geral.

10.) Reação inicial: A primeira resposta habitual diante do novo.   

Cada traço de temperamento pode ser classificado quanto à sua apresentação ou intensidade. Simplificando, duas características são frequentemente analisadas: adaptabilidade e ritmicidade. Crianças consideradas "fáceis" têm boa aceitação ao novo e ritmos diários previsíveis. Já as "difíceis" resistem à adaptação e são menos previsíveis em suas vontades e funções fisiológicas, como fome ou sono, devido a ritmos irregulares. Existe ainda um terceiro grupo, as crianças "moderadas", ou "lentas para aquecer", que apresentam resistência inicial a mudanças, mas eventualmente se adaptam bem quando lhes é dado tempo suficiente. Seus ritmos também podem ser previstos, até certo ponto, pelos cuidadores.

O entendimento aprofundado dos traços de temperamento e suas intensidades pode auxiliar na adequação de diferentes crianças ao seu ambiente, levando em consideração o modelo educacional proposto e até mesmo o temperamento de seus cuidadores. Essa adequação é fundamental na composição do comportamento infantil. Crianças mal ajustadas ao ambiente ou ao modelo educacional tendem a apresentar transtornos de comportamento e a serem consideradas "difíceis".

O temperamento é fortemente modulado pelas influências socioculturais e pelas práticas educacionais a que a criança é exposta. Quando há uma compreensão profunda e aceitação das diferenças temperamentais, as crianças tendem a prosperar. No contexto educacional, estratégias personalizadas podem ter um impacto significativo no comportamento e no desempenho das crianças. Métodos pedagógicos que reconhecem e respeitam diferentes traços de temperamento podem ser essenciais para atender às necessidades de cada criança, promovendo seu engajamento e desenvolvimento integral.

A compreensão e o manejo do temperamento infantil são fundamentais para o desenvolvimento saudável das crianças e para a harmonia nas relações familiares e educacionais. Ao integrar conhecimentos sobre influências socioculturais, abordagens educacionais e intervenções terapêuticas, podemos criar ambientes que respeitam e cultivam a individualidade de cada criança. E ao fazer isso, não apenas atendemos às necessidades imediatas das crianças, mas também contribuímos para o desenvolvimento de adultos mais resilientes e emocionalmente equilibrados.

 

*Guilherme de Abreu é médico, pediatra e neonatologista, graduado pela Universidade de São Paulo. Trago comigo mais de quinze anos de experiência clínica e em pesquisa, tendo sido treinado em instituições renomadas no Brasil e no exterior. Atua principalmente no cuidado pediátrico e de crianças com transtornos do desenvolvimento, com especialização na área de Desenvolvimento & Comportanneto Infantil em Cleveland - EUA.

 

**edição de Marina Yazbek Dias Peres

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