Divórcio: a evolução dos direitos das mulheres

O melhor presente que recebi esse ano enquanto mulher, advogada e familiarista foi participar da abertura do V Congresso Mulheres Familiaristas

Caroline Oehlerick Serbaro* Publicado em 22/03/2024, às 06h00

Estamos no mês de março, mês das mulheres -

Muito mais que uma questão corporativa, o que vibrou em mim ao subir no púlpito e olhar para a plateia predominantemente feminina, num evento para mulheres, organizado e idealizado por outras mulheres, foi imaginar que há pouco tempo atrás nós não tínhamos sequer o direito ao voto, e a nostalgia distante da minha lembrança em vida mas presente em nossa história me trouxe de volta para o momento presente em que dei um caloroso bom dia naquele 15 de março com alegria e gratidão a todas que lutaram para que eu e minhas colegas de evento estivéssemos ali. Tenho 38 anos e apesar de já ter nascido em um momento histórico relativamente mais avançado, é inegável a sensação de satisfação em ocupar e ver outras mulheres ocupando espaços que promovam conhecimento, transformação e liberdade de expressão.

Do ponto de vista jurídico, o direito das mulheres evoluiu, sobretudo, nos últimos anos. Por outro lado, é assustador pensar que até poucos anos atrás, nós mulheres além do voto não tínhamos o direito de nos divorciarmos como hoje. Abro um parêntesis para pontuar uma observação: no intervalo do congresso fui retocar a maquiagem no banheiro e uma colega ao lado no espelho comentou: sabia que até 2000 não era permitido que nós advogadas entrássemos nos tribunais de calça? Respondi: é sério isso? Ela disse: sim, é verdade. Após uma pausa silenciosa, nós olhamos com ar de amizade e voltamos para o auditório com altivez e conscientes da nossa responsabilidade em ocupar aquele espaço. Voltando ao divórcio, que é minha área de especialização e atuação, toda vez que penso em como esse direito pungente foi negado na prática principalmente a nós mulheres, diante de uma legislação patriarcal, machista, autoritária e retrógrada com intuito de cercear nossa liberdade de escolha e livre afeto, imagino como se sentiam mulheres como eu que viviam num passado não muito distante.

Uma breve evolução histórica do direito ao divórcio:

A indissolubilidade do casamento era prevista na CF de 1934, art. 144 com o seguinte texto - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção do Estado. Na CF de 1946, art. 163 -  A família é constituída pelo casamento de vinculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. E na CF de 1967 - art. 167 - A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos poderes públicos. Parágrafo 1º - O casamento é indissolúvel.

Apesar de algumas mudanças de redação, estava consagrado em todos os documentos a família e o casamento indissolúvel. Esse era o papel da família, do casamento e da mulher.

No Código civil de 1916, já revogado, para terminar a sociedade conjugal, só aconteceria nos seguintes casos: pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, pelo temido desquite, amigável ou judicial. A ação de desquite só poderia fundar-se pelos seguintes motivos: adultério, tentativa de morte, injuria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos contínuos.

O título de desquitada não era o sonho de uma mulher, eis que era um termo pejorativo e preconceituoso. A mulher desquitada era discriminada, “falada” e não poderia casar-se novamente.

A batalha divorcista teve um avanço importante na EC 9/1977 com a aprovação conseguida pelo Senador Nelson Carneiro que tinha vários rivais no congresso e era chamado de “profeta das ruinas” e “coveiro da família brasileira” (reflitam), e trouxe como nova lei o instituto da separação judicial art. 175 parágrafo 1º -  O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais três anos.

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Essa lei mostra a conciliação entre os divorcistas e os antidivorcistas, em que as pessoas poderiam se divorciar, desde que passado o prazo de três anos, além de provar a culpa do outro pelo divórcio quando houvesse. Imaginem a dificuldade para uma mulher vivendo infeliz numa relação passar por isso, e ainda ter que provar uma traição em meados dos anos 70 e sem internet. A separação judicial era um tipo de limbo em que a pessoa vagava sem ser casada nem divorciada - na época um avanço, analisando hoje, um retrocesso.

A CF de 88 em seu art. 226 alterou a redação anterior para o prazo de dois anos da separação judicial para ser concedido o divórcio.

E finalmente no ano de 2010 é que através da EC 66/2010 foi extinta da lei a culpa pelo divórcio, o prazo de dois anos e a quantidade de vezes permitidas do divórcio, que até então só poderia acontecer uma vez. O pedido de divórcio poderá ser feito de forma consensual ou litigioso, excluída em qualquer caso a discussão sobre possível culpa.

Esse breve evolução histórica da legislação nos mostra a dificuldade em fazer valer o direito à liberdade inerente a todos, especialmente a nós mulheres, já que se fosse provada a culpa pelo divórcio a mulher perdia o direito a partilha, a usar o nome do marido e a guarda dos filhos. Um dos argumentos daqueles que defendiam a separação judicial era a possibilidade de retornar o vínculo e desistir do divórcio por meio da reconciliação. O absurdo disso é o Estado interferir por questões morais e religiosas no direito privado e na liberdade das pessoas.

Atualmente a separação de fato e a separação de corpos, persistem, mas o instituto da separação judicial foi extinto do ordenamento jurídico e o divórcio é um direito garantido e potestativo, ou seja, se uma das partes quiser se divorciar esse direito se cumprirá. Mas para além da legislação, ainda há dificuldades enfrentadas pelas mulheres durante o processo de divórcio. Algumas das principais queixas que ouvimos das clientes que nos procuram é sobre a dificuldade em “convencer” o parceiro acerca do divórcio, sendo muitas vezes ignoradas e anuladas; a violência patrimonial em virtude de que na grande parte dos casos, o patrimônio está em domínio do homem enquanto a mulher trabalha invisivelmente no lar e no cuidado dos filhos; e por fim, a forma de vingança adotada por alguns homens inconformados com o fim do relacionamento, que se valem da lei de alienação parental para fazerem falsas alegações e prejudicar as mulheres tirando a guarda dos filhos. Esse tema é polêmico e sensível, e essa questão institucional que contamina a sociedade e o poder judiciário - considerando a atuação deficiente de alguns dos seus membros -  é um ponto que apesar das nossas garantias expressas na lei, ainda nos aprisiona de forma velada em pleno ano de 2024.

Um avanço atrelado ao divórcio e que sonhamos que tenha eficácia não só na legislação mas também na prática, está previsto na Lei Maria da Penha em seu artigo 23 - Poderá o juiz quando necessário, sem prejuízo de outas medidas:

IV - determinar a separação de corpos.

 Essa é uma medida protetiva que visa garantir mais segurança às mulheres em cenários de violência e combater o alto índice de feminicídio - alarmante - em nosso país.

Estamos num momento efervescente de transformação do pensamento e do comportamento humano, e participar dessa evolução refletida em nossa legislação é um ato político que não resolve todas as nossas dificuldades, mas nos acalenta e esperança em tempos melhores com mais amor, segurança e liberdade. E que assim como o congresso que participei esse mês e que para mim foi um presente, que esses novos tempos sejam um prenúncio de uma nova era mais feminina, ecológica e espiritual com a merecida ascensão nos âmbitos jurídicos e sociais da energia criativa, próspera e potente inerente a nós mulheres.

 Viva a Justiça, o Feminino e a (R)evolução!

*Caroline Oehlerick Serbaro é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões com ênfase interdisciplinar em Psicanálise e Solução de Conflitos, Head direito de família do escritório Afonso Paciléo Sociedade de Advogados e co-criadora do projeto @divorciandos

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