Como a adoção de filhos pretos por pais brancos desafia estereótipos e preconceitos raciais na sociedade atual
Antoune Nakkhle* Publicado em 07/07/2025, às 06h00
Debaixo do azul forte desse inverno começo a me lembrar dos pais brancos que conheci e com os quais troquei conversa. Os pais brancos de filhas e filhos pretos, os de filhas e filhos brancos, e os pais brancos que sequer se dão conta da cor de seus filhos porque esses são os tais seres humanos evoluídos e para eles cor não existe porque todo mundo é igual.
Recentemente, na Feira do Livro, em São Paulo, me peguei conversando com um amigo que encontrei ao acaso no evento – também branco e também pai por adoção de um filho preto – e começamos a rir daquelas perguntas absurdas que sempre nos fazem. Sim, o jeito é rir. Pela primeira vez, senti cumplicidade de pai para pai sem nenhum tipo de distinção por parte do outro pai e o deserto a que sempre me refiro aqui na coluna quando converso com outros pais de filhos biológicos desapareceu.
Conheço um outro pai branco de filho preto muito legal. Gente boa mesmo. Afetivo com o filho, atento e preocupado com qual escola pode ser melhor para ele etc. O incômodo de seu filho na escola quando o assunto é adoção é grande, mas não é conversa entre eles, pai e filho. Esse assunto o garoto fala com a mãe dele que, sempre que pode, comenta com o pai. E assim o telefone sem fio entre este pai e este filho se estende. E a distância entre pai e filho que entristece todo filho também aumenta.
Tem também pais que não param para ouvir seus filhos ou filhas pretos vindos por adoção sobre o racismo que frequentemente os machuca. Imagine uma filha que ouve de seu pai: “Você é minha filha e pronto. Não dê importância para quem diz isso. E fala para esse povo parar de encher. Ou melhor: manda vir falar comigo. Quero ver se eles têm coragem de repetir essas coisas na minha cara” (note a macholândia em ação). E assim, a dor dos filhos com pais com este perfil segue dentro deles, criando raízes.
Eu conheço um pai branco que tem uma filha preta também adotada que colocou nela o nome da avó dele e diz, com fé, que a ligação espiritual entre a filha e todos da família dele é tão forte que sua filha até se parece com a família dele porque cor não existe. Ai.
Outros pais preferem passar o pano quando a família, o vizinho, a bisavó ainda lúcida ou a professora da escola da sua filha cometem crime de racismo ou falam de maneira pejorativa sobre adoção e disparam:
— Não é por mal, mas é mesmo difícil aprender que as coisas mudaram, a gente precisa ter paciência com as pessoas, senão elas não poderão falar mais nada.
O melhor que eu tenho a fazer é viver a paternidade com minha filha. Ser pai e amar seu filho não tem nada a ver com o fato de o filho ser ou não biológico; ser ou não adotado. Nada disso interfere no amor de um pai por um filho.
Por que será que os pais brancos de filhos(as) pretos(as)que eu mencionei acima não assumem com naturalidade que seus filhos ou filhas vieram por adoção? Por que eles não aceitam que adoção e racismo muitas vezes tem uma relação direta e que isso não é vergonha? Qual o problema de se assumir pai de uma criança preta – seja ela preta retinta, preta da pele clara ou simplesmente preta? De onde vem a necessidade de um pai dizer que o filho não é preto, mas moreninho ou queimadinho de sol?
Outra coisa que me vem agora à cabeça é pensar o que faz tanta gente dizer que a pessoa que tem filho adotado e não tem filhos biológicos é mal resolvida por isso?
O preconceito, o racismo e o machismo têm várias camadas... essa é uma delas. Nossa sociedade em nosso país, por uma série questões e fatos históricos que aqui não vem ao caso, sempre nos faz acreditar em alguns pontos um tanto tóxicos.
Eu, branco que sou, fico bem à vontade para criticar esses pais reais que citei aqui no texto, pois, preciso admitir, infelizmente tenho um pouco de cada um deles pelo fato de ser branco. Mas posso me esforçar para me desconstruir e provocar reflexões. E você, pai que me lê do outro lado? É perfeitão?
O melhor que podemos fazer é nos investigar para descobrir a origem desses pensamentos morais tão hipócritas e conservadores e assim entender a importância da desconstrução do machismo, racismo e discriminação que nos habitam.
Ser antimachista e antirracista já é um bom começo.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, que acaba de completar 21 anos. Um pai branco de filha preta.
Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com
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