Questionamentos para quem decide passar pelo processo de adoção sempre vêm carregados de preconceito
O preconceito tem várias camadas. Muitas vezes vem coberto pelo que chamam de amor. Outras, pelo manto da preocupação “falo porque sou teu amigo – só amigo diz coisas difíceis, pense nisso”. Ou ainda travestido de máxima “só não quero ver você sofrer apenas para realizar o sonho de ser pai”.
Ninguém faz ideia de como isso bate no coração de quem ouve uma fala dessas. Até parece que vou cortar um dedo fora para ser pai. É apenas uma adoção de um filho que, no meu caso, não veio do ventre da minha parceira. É fruto do nosso amor do mesmo jeito. Não é crime nem irresponsabilidade. Dá muita tristeza ouvir coisas deste tipo. É só o que consigo descrever.
“Tem gente que não nasceu para isso, Deus não quis! Aceita. Deus deve estar vendo que isso não é para você”.
Misturar o desejo de ter um filho com crença religiosa e moralista é péssimo. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Quer dizer que a condição para ter um filho é que ele seja biológico? Só posso ser pai se for assim? Mais do que rejeitado, me sinto excluído ao ouvir uma frase com um pensamento idiota desses. Eu quero ser pai porque quero ser pai. Posso ser ateu e ter o sonho de ser pai. E ponto.
“Observe os sinais que a vida está dando... se vocês não conseguem ter
um filho de verdade, é porque a vida vai dar outras coisas para vocês”.
Filho de verdade? Eu não mereço esta ofensa sem noção e não aceito. Seja adotado ou biológico, filho de verdade é o seu filho. Eu tenho uma filha amorosamente adotada. Acho que você não sabe o que é filho de verdade. Dá raiva. Mais do que isso, dá vontade de esganar. Alguns até se sentem íntimos quando ninguém deu liberdade para
perguntar:
“Bem, já que você adotou, me conta: deu certo a adoção? E o fato de ela
ser moreninha? Atrapalha muito no dia a dia, como é que é?”
Quem deu liberdade para alguém fazer uma pergunta invasiva dessas? Ninguém nunca dá permissão para este tipo de questionamento. Por mais amigo que este sujeito seja, sensibilidade é bom, conserva as relações. Fica parecendo que porque você adotou você tem que ouvir todo tipo de pergunta.
E se as respostas para essas pessoas fossem:
- Você, me fala: você é feliz?
- Sua vida deu certo?
- E você, deu certo como pai?
- Deu certo como mãe?
- Ter filho deu certo?
- Você se arrependeu de ter filhos?
- Era melhor antes, quando eram só vocês dois sem filhos?
Essas perguntas raramente são feitas a pais brancos que tiveram filhos biológicos.
As pessoas fazem este tipo de pergunta como se fosse certo que uma adoção traz problemas. Especialmente se a criança for preta e os pais brancos.
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Por que a sociedade questiona tanto a adoção se adotar é apenas mais uma forma de ter filhos? A sociedade não aceita e não acredita na adoção porque ela própria não deu certo.
Talvez a pergunta que dá título a este artigo se traduza no incômodo que sentimos ao ver alguém fazendo algo que jamais faríamos, como adotar. Simplesmente porque raramente as pessoas pensam em adotar como primeira opção. Ou porque acham que “filho de verdade mesmo” é o que tem a sua cara.
É muita hipocrisia. Filho é quem a gente ama.
Estas são reflexões datadas, mas parecem flutuar no inconsciente coletivo. Os palpites sem serventia magoam. Desencorajam quem pensa em adotar.
Vou parar com os exemplos destas frases que sempre ouvi e ouço porque é daí ladeira abaixo e no fim, morremos todos de sede diante do mar de ignorância que nos acompanha desde que nascemos até construirmos nossa identidade.
Somos todos muito preconceituosos. Dá até impressão que ser preconceituoso nos coloca em um lugar de superioridade. Como se fôssemos os síndicos do mundo, os donos das melhores receitas de felicidade.
“Ah, Antoune, eu falo essas coisas porque eu aprendi assim com meus pais, fui educado assim. Não tenho culpa. Mas agora que as coisas estão mudando eu estou me desconstruindo, entende?”
Não entendo. É ridículo dizer isso.
É melhor admitir que somos todos preconceituosos, sem nos escondermos atrás da educação que recebemos. Esta justificativa não avança. Só defende, endurece e bloqueia a troca de experiências.
A adoção não é um favor. Muito menos uma boa ação. No máximo, podemos ver como uma troca de amor entre pais, mães e filhos. Filhos que não se parecem fisicamente com seus pais. E daí? Isso é da conta de quem mesmo?
Adoção é uma escolha do tipo de amor que queremos que nos acompanhe por toda a nossa vida.
Isso sempre dá certo.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de
18 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta.
paibrancofilhapreta@gmail.com