O relato de Mariana Rosa nos faz refletir sobre a importância do ouvir a e da humanização das relações
Mariana Rosa* Publicado em 10/05/2023, às 06h00
- É preciso usar as órteses o dia inteiro, do contrário ela ficará com esse pé equino, sem função. Não poderá andar. É preciso fazer isso enquanto é criança, porque terá mais chances de ter pés normais. Ela vai acabar se acostumando, basta insistir.
Sabe o que é, doutor, ela não tolera contenção. Chora muito com as órteses, molha o corpo de suor por ficar nervosa com isso. E esse pé que fica em ponta, que o senhor diz que é preciso consertar, conta muitas coisas sobre ela. Esse pé em ponta pede para sair da cadeira de rodas, confirma desejos, protesta desconfortos, responde carinhos e refuta inconveniências. Carrega uma porção de intenções bem ali na ponta, e lança uma a uma para nós, sempre que ela quer.
- Veja, ela já está com uma diferença grande de uma perna para outra. É comum de acontecer com crianças com quadro grave de paralisia cerebral, como sua filha. Provavelmente há subluxação de quadril. Ela deve dormir com esse aparelho de ferro, que vai manter suas pernas abertas em uma angulação adequada para prevenir problemas severos, embora seja uma medida que apenas adia, mas provavelmente não evita uma cirurgia no futuro.
Sabe o que é, doutor, passar a noite inteira deitada na mesma posição faz doer o corpo. E justo agora, que ela está começando a aprender a mudar de lado sozinha, experimentando as preferências para dormir... Ela gosta de ficar à vontade na cama, sabe? Se somarmos a recomendação do uso da órtese nos pés durante todo o dia com o uso da órtese no quadril à noite, não é muita coisa, doutor? Como será que ela vai compreender isso:? Será que ela pode pensar que tem um corpo que precisa ser formatado?
- Tem também as mãos. Os dedos polegares estão ficando para dentro, abduzidos. Ideal é usar essas luvas durante o dia. São macias, e vão manter os dedos abertos, todos em suas posições.
É que a gente gosta de segurar a mão dela, doutor. Sentir o suor quente em sua pele, e ir abrindo os dedos como quem vai tocando as pétalas de uma flor. A gente pode colocar uns grãos, uns brinquedos, uns lápis para ela brincar, e talvez isso já mantenha os dedos mais abertos, quem sabe... Não pode ser isso no lugar das luvas, doutor?
- E essa escoliose nas costas, já buscaram avaliar roupas com propriocepção para ela, para alinhar a coluna? Esse desvio comprime os pulmões, ela já tem pulmões frágeis. Se usar essa roupa durante o dia, pode dar uma informação correta de postura para ela e, quem sabe, se ela tiver sorte, melhora. A roupa é bem quente, não é muito apropriada para o clima brasileiro, mas ela vai se acostumar.
- Doutor, mas já tem as órteses dos pés e dos quadris, tem também as luvas para as mãos, e agora essa roupa? Parece que vamos cobrindo minha filha de aparatos e sinto que não vou mais alcançá-la. Sabe, doutor, não se aborreça de eu dizer isso, mas quando ela se senta assim meio torta, eu acho charmoso. Porque ela tira partido disso e faz umas expressões que conjugam doçura e braveza, que comunicam tanto de sua personalidade! Não sei como seria minha filha sem esse desvio que o senhor diz que precisa corrigir.
- Essas ondas cerebrais estão muito desorganizadas. Olha quantas descargas elétricas. Vamos precisar aumentar a dose da medicação e introduzir medicamentos novos. Se continuar como está, ela vai perder o que desenvolveu e terá uma vida muito dependente. Tenho aqui algumas amostras grátis para tentarmos, vamos aos poucos, até chegar na dosagem máxima. Pode ser que ela fique inapetente, que desregule o intestino, pode ser que ela fique bem sonolenta e diminua os reflexos para alguns movimentos, como engolir saliva, por exemplo. Vai babar um tanto mais e dormir outro tanto mais, mas se controlar as crises convulsivas será um grande avanço.
Já tentamos isso antes, doutor. O que acontece é que perco a conexão com a minha filha. Ela se desliga do mundo, embora o eletroencefalograma melhore. Sabe o que é, doutor, ela anda tão comunicativa, tão atenta! Os olhos dela passeiam por todos os lugares e todas as pessoas, nada lhe escapa. Ela está aprendendo tantas coisas novas! Quando as convulsões acontecem de maneira mais intensa, costumam nos avisar de que há alguma infecção ou dor. Já descobrimos alguns adoecimentos assim, por causa da pista que o aumento das convulsões nos dá. Nós já aprendemos a lidar com isso num limite seguro para ela e ela nos sinaliza quando não está bom.
Doutor, se adotarmos as órteses nos pés e nos quadris, junto com as luvas nas mãos, a roupa para correção da escoliose e o aumento da medicação para controle das crises convulsivas, se fizermos tudo isso sem levar em consideração seus choros e reivindicações, seus desejos... e se ela for consentindo porque é mais vulnerável, ou porque já foi sedada o bastante para protestar... essa pessoa cordata, entregue, apagada, contida, amarrada que terei nos braços ainda será a milha filha?
*Mariana Rosa é jornalista, mestranda em Educação pela USP, ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, fundadora do Instituto Caue - Redes de Inclusão e mãe da Alice