Cada vez mais temos que combater o capacitismo. Conheça a história de Rebecca Canuto, a futura dentista que transformou a deficiência em sua aliada
Rebecca Canuto* e Luciano Barreto Silva** Publicado em 25/10/2024, às 06h00
No dia 25 de outubro, celebramos duas datas importantes e simbólicas: o Dia do Cirurgião-Dentista e o Dia Nacional de Conscientização sobre o Nanismo. (Luciano Barreto Silva, Professor de Endodontia Faculdade de Odontologia do Recife)
A deficiência não é meu limite Sou Rebecca Canuto, tenho 19 anos e nasci com uma síndrome chamada de acondroplasia, mais conhecida como nanismo.
Na minha vida, graças à Deus, foram poucas as vezes que sofri algum tipo de preconceito, pois no ambiente escolar que eu convivia, sendo uma escola que inclusiva, acolhia crianças com todos os tipos de deficiência. Fiz muitas amizades verdadeiras que levarei para o resto da vida.
Fui criando minha bolha e me apegando a isso, mas quando você chega na vida adulta, é um impacto muito grande, principalmente com pessoas que você não conhece, de locais totalmente diferentes.
Quando ainda estava no 3° ano do ensino médio, me veio uma inspiração muito forte que meu caminho seria na Odontologia, então decidi procurar faculdades particulares e públicas. Quando selecionei as instituições para visitar, me encantei logo de cara com a FOR (Faculdade de Odontologia do Recife). Assim que entrei para conhecê-la, já fiquei entusiasmada com tudo o que vi. A primeira pessoa que conheci foi o professor Rodolfo Scavuzzi, que estava na clínica-escola, que me explicou muito sobre o curso e me acolheu da melhor forma possível. Foi aí que decidi que era ali que eu queria estudar, pois é como se o destino tivesse me dito que ali era meu lugar para eu me preparar para o futuro.
Um momento muito marcante foi no meu primeiro dia de aula, com o professor Luciano Barreto. A primeira coisa que ele me falou foi que minhas mãos eram perfeitas para fazer canais em dentes posteriores, e que se eu quisesse investir, iria me dar muito bem na especialização em endodontia. Fiquei muito feliz! Se já era uma área que eu tinha em mente...com ele falando isso, me motivou a continuar com essa ideia firme até os dias atuais.
Fui preparada desde que nasci para fazer o que eu quisesse da minha vida pessoal e profissional, sem me importar com o que as pessoas pensam ao meu respeito. Eu me considero uma pessoa muito forte, pois apesar da pouca idade, já passei por muitas situações na vida em que eu tive que manter a cabeça erguida e lutar pelos meus direitos. Vivemos em uma sociedade que ainda tem pessoas com a mentalidade muito fechada e precisamos combater esses estigmas desnecessários.
A faculdade realmente me aceitou como pessoa com deficiência e me deixa a vontade para exigir meus direitos, além de ter se adaptado e ainda estar se adaptando em várias coisas para minha rotina no dia a dia. Essa adaptação vai desde coisas pequenas, como fazer um banquinho adaptado para apoio das pernas em sala de aula, até intervenções mais complexas, como modificar um equipo [conjunto de equipamentos e instrumentos do consultório odontológico] para minha prática na clínica.
Além disso, está desenvolvendo, com minha participação, o projeto de construção um equipo adaptado a pessoas com nanismo que também venham estudar odontologia no futuro). A instituição pretende patentear e liberar a patente do projeto para que haja mais inclusão nessa profissão tão linda e necessária à sociedade.
Minha família sempre me acolheu da melhor forma que poderia ter acolhido alguém e sinto que todos têm muito orgulho pela mulher que estou me tornando ao longo da vida e pela luta que tento combater e mostrar todos os dias, pois para mim, o céu é o limite.
*Rebecca Canuto, estudante de odontologia
Rebecca incorpora o 25 de outubro como ninguém. No dia 25 de outubro, celebramos duas datas importantes e simbólicas: o Dia do Cirurgião-Dentista e o Dia Nacional de Conscientização sobre o Nanismo. Em uma área como a odontologia, que lida diretamente com o ser humano, a inclusão e o respeito às diferenças são pilares fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e empática.
Em março de 2023, tive a honra de conhecer Rebecca, a primeira estudante de odontologia do Recife com nanismo na nossa faculdade. Alguns professores me disseram que ela era a primeira do Brasil, mas eu não tinha certeza da informação. A notícia de sua chegada gerou em mim curiosidade, mas também um desafio: como adequaríamos nossa clínica odontológica para proporcionar a ela, e a todos os estudantes, uma experiência completa e inclusiva?
No primeiro dia de aula, quando avistei Rebecca, ela se apresentou com a mesma coragem, inseguranças e sonhos que qualquer outro aluno. No entanto, algo chamou minha atenção: suas mãos. Mãos pequenas, sim, mas fortes e habilidosas. Imediatamente me veio à mente o potencial dessas mãos para a endodontia, uma especialidade que exige precisão e destreza em espaços extremamente reduzidos, como os canais radiculares dos dentes. Percebi que essas mãos poderiam alcançar lugares onde outras mãos teriam dificuldades.
Além disso, Rebecca é uma jovem extremamente bem resolvida, com uma determinação impressionante. Ela tem a garra e o esforço necessários não só para vencer os desafios físicos, mas também para desenvolver as habilidades motoras e mentais que farão dela uma excelente profissional. Seu comprometimento e perseverança são uma inspiração para todos nós.
Ainda no início do curso, tivemos o prazer de receber na faculdade a mãe de Rebecca. Em um encontro emocionante, ela nos explicou as dificuldades e angústias que enfrentou ao longo dos anos, até que, finalmente, se sentiu segura para que sua filha começasse o curso. Sua história de luta e superação emocionou toda a equipe, reforçando a importância do acolhimento e da adaptação para que Rebecca pudesse ter um ambiente seguro, propício e individualizado ao seu desenvolvimento.
No meio da aula, fiz uma pausa e pedi que Rebecca colocasse sua mão sobre a minha, para confirmar o que já tinha percebido: aquelas mãos eram perfeitas para a endodontia. Disse a ela: "Essas mãos chegarão a lugares que outras mãos não conseguem. Por favor, não permita que outro professor a direcione para outra especialidade. Eu a orientarei." Talvez pelo fato de um dos meus filhos ser autista tenha aguçado minha sensibilidade no acolhimento à nova aluna.
Daquele momento em diante, começamos, junto à equipe da Faculdade de Odontologia do Recife, a trabalhar para adaptar nossos equipamentos e fornecer a Rebecca as ferramentas que ela precisaria para brilhar em sua jornada. Cada professor abraçou essa causa com dedicação, e nosso primeiro equipamento adaptado já está em processo de construção. Depois de ficarmos próximos no decorrer das aulas, eu a questionei: “Rebecca, você tem noção da quantidades de portas que você terá de abrir para outros passarem? Você compreende as dificuldades, os preconceitos e os desafios que a sociedade irá lhe impor?”; percebi no seu semblante um olhar pensativo e profundo. Daí ela me disse: “minha vida toda tem sido assim professor... Estou acostumada com isso. Vamos em frente!”. Impressionante como aprendi com ela minha primeira lição, de muitas que viriam, e que virão.
Felizmente, leciono em uma instituição que sempre acreditou na inclusão e na importância de dar a todos, independentemente de suas condições físicas, financeiras ou orientação sexual, a oportunidade de mostrar seu talento, desenvolver suas habilidades e contribuir para o crescimento da odontologia.
Nesse dia 25 de outubro, ao celebrarmos o Dia do Nanismo, reitero meu compromisso e o da nossa comunidade acadêmica, de lutar contra o preconceito e a intolerância, promovendo a inclusão e a igualdade de oportunidades. Que a história de Rebecca inspire futuros profissionais a valorizar as diferenças e a enxergar o potencial único de cada ser humano.
Assim, também celebramos o Dia do Cirurgião-Dentista, que, mais do que uma profissão, é um compromisso com o cuidado, a ética e a inclusão. Uma pessoa; dois dias celebrados simultaneamente. Isso não pode ser obra do acaso.
**Luciano Barreto Silva Professor de Endodontia Faculdade de Odontologia do Recife