Um profundo olhar sobre como as transformações internas podem se tornar uma obra literária que celebra a vida e a força das mulheres.
Luciana Ribeiro Lopes* Publicado em 05/10/2023, às 06h00
Era começo de pandemia quando decidi me matricular na pós-graduação de escrita do Instituto Vera Cruz. Queria investigar a escrita de si, essa narrativa em primeira pessoa onde o narrador se identifica nitidamente com o autor, um colado no outro, página após página. Um exercício literário corajoso, chamado, às vezes e injustamente, de escrita egóica.
Eu sabia que queria escrever. Sabia que iria debruçar sobre minhas memórias, espiar o passado, descortinar o presente, vasculhar cada canto nosso, meu. O que eu não sabia, era que a menopausa seria a catalisadora desse processo. Não imaginei que ela ficaria grudada, queimando, sufocando, matando, me empurrando pelas costas para que, cega, vertesse as palavras no caderno.
Durante três anos joguei, diariamente, o entulho mental nas folhas de pólen. Agarrada à lapiseira, investiguei de onde vinha a dor e o medo que eu sentia. Às vezes, me afogava, me perdia, recorria às cartas de tarot pra ouvir um conselho, mudar a rota, achar de novo o caminho.
Escrevi com as vozes de Virginia, Clarice, Simone, Sylvia, Annie, Elena, Carolina, Alba, e tantas outras, sussurrando no meu ouvido. Imaginava cada uma delas sentadas sob seus tetos, mais ou menos seus, escrevendo nas horas de descuido, de descanso, de insônia, de fuga, de coragem, em condições tão diferentes das reservadas aos homens: bibliotecas silenciosas, trancadas, protegidos do barulho da casa, da presença dos filhos, das reclamações das mulheres. A comida quente chegando nas horas marcadas, a bebida sempre na temperatura certa.
Passei tempo me questionando como conseguiram escrever, essas mulheres que precisavam inventar nomes de outro gênero, esconder suas escrituras, guardar suas angústias, medos, frustrações, raivas, desesperos, em folhas soltas, dentro de pastas, em cadernos proibidos.
Pensei que sentiram a mesma dor que eu, sentada ali, elaborando cada pequena mortezinha, sentia. E depois de tanta entrega, esforço, lágrimas, como teria sido saber que suas obras eram consideradas literatura menor, já que falavam da vida comezinha, ordinária? Lembrei que algumas não suportaram e acabaram dentro de um rio, de um forno, ou reféns de uma vida medíocre.
Aos poucos, com foco no copo enchendo, aceitei os incômodos da mulher em pausa, relembrei que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, e avancei. Com a ponta do fio vermelho na mão, escrevi a vó, a mãe, a mim, a filha. Uma tecitura que foi me abrindo os olhos, deixando para trás o que não me servia mais, aceitando conviver com o que era impossível eu me livrar, tentando salvar a minha menina dos nossos pesares.
Pequenas mortezinhas – memórias de uma mulher viva, é meu primeiro livro. Um romance de autoficção íntimo, visceral, uma experiência catártica de superação de traumas e desafios que moldaram minha vida. Nele, a menopausa se tornou mais do que um acontecimento biológico; foi uma força que guiou minha narrativa para a minha verdade e legitimou minha escrita. Uma obra que revela a beleza crua das transformações internas e celebra a força das mulheres vivas.
*Luciana Ribeiro Lopes é autora de "Pequenas Mortezinhas - Memórias de uma Mulher Viva"
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