A história de Lélia ilustra a força das mulheres em Alcoólicos Anônimos e a importância de se sentir cuidada e amada.
Lélia* Publicado em 22/11/2025, às 06h00
Eu sou Lélia*, uma alcoólica em recuperação, e escrevo esse depoimento sem ter ido ao primeiro gole nas últimas 24hs. Tenho 48 anos e sou uma mulher preta, vinda de uma família humilde do subúrbio do Rio de Janeiro, onde o álcool sempre esteve presente em todos os momentos. Comecei a beber muito cedo, incentivada pela minha família. Era um ritual de pertencimento saber beber com os mais velhos e assim comemorar as alegrias e anestesiar e curar as dores do mundo.
Mesmo assim, sempre vivi um vazio e uma sensação de inexistência social por não entender minha raça. Não me sentia nem da família do meu pai - todos são brancos – e nem da parte da minha mãe – sendo a maioria pessoas pretas. Meu tom de pele era diferente.
Essa constante busca por uma identidade me levava ao álcool como um refúgio, um lugar de prazer ou apaziguamento comigo. Bêbada, o mundo era maravilhoso e eu não precisava achar nenhuma resposta e podia ser quem eu quisesse.
Reingressei em Alcoólicos Anônimos (A.A.) em maio de 2025, totalmente destruída, desacreditada e perdida. Com mais maturidade e em recuperação, entendo que me saber uma mulher negra abriu minha visão de mundo e me encheu de orgulho de ser quem eu sou. Ao mesmo tempo que foi libertador entender minha identidade, lidar com uma sociedade racista que deseja que eu não exista, não foi fácil e fez minha doença progredir.
Saber-se negra é também aprender a nomear as violências e eu não dei conta das várias facetas do racismo. Era preciso beber, ficar anestesiada e tentar seguir. Não podia parar, entregar os pontos. Como mulher preta, o estereótipo de ser forte e dar conta de tudo dificultou pedir ajuda. Na época não admitia que era alcoólica. Me achava um erro, um lixo e uma fraca porque ao contrário dos meus ancestrais que lutaram pela liberdade, eu estava sendo escravizada pelo álcool. Estava derrotada, na solidão e sem enxergar uma luz para seguir.
Meu Poder Superior nunca me abandonou e me colocou novamente dentro de uma sala de Alcoólicos Anônimos. Ser membro de A.A. me faz entender que além de mulher, negra, eu sou portadora da doença do alcoolismo e mereço ser cuidada e tratada. Em especial, estar frequentando reuniões de composição feminina me faz entender que não ando mais sozinha e que sou valorizada e amada. O programa de Alcoólicos Anônimos vem me devolvendo a luz, a autoestima, a esperança e a confiança. Não luto mais contra o álcool, pois sei que ele ganhará sempre. Reconheço a minha impotência e estar irmanada com as minhas iguais faz toda diferença.
Em recuperação, me sinto mais equilibrada para lidar com as minhas dores, principalmente as causadas pelo racismo, e procurar meios para lidar com a diária exposição a ele. O alcoolismo feminino é cruel, porém a minha vivência me aponta que ser negra me expõe a perigos maiores, pois meu corpo é animalizado e minha existência assujeitada.
Me perguntaram o que eu vim buscar em A.A. e eu respondi que não queria morrer, mas hoje eu só quero não ter medo. Para mim, uma mulher preta alcoólica, liberdade é não ter medo! Só por hoje. Funciona.
Se você se identificou com o depoimento da Lélia, entre em contato com a Colcha de Retalhos de Alcoólicos Anônimos, uma iniciativa de mulheres alcoólicas de A.A.. Em pouco mais de um ano e meio, cerca de 6,5 mil mulheres entraram em contato pelo Canal de Ajuda ou pelo Whatsapp. Atualmente são 65 reuniões femininas realizadas semanalmente.
* nome fictício
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