Entre genes e aparências: o que define raça no Brasil?

A ancestralidade genética não define a percepção de raça; o fenótipo é o que realmente importa na sociedade brasileira.

Davi Barbosa* Publicado em 01/08/2025, às 06h00

Análise dos dados do IBGE revela que a maioria da população se autodeclara negra - Reprodução/Freepik

Recentemente viralizou dados de um estudo realizado pela USP que sequenciou o genoma de 2.723 brasileiros/as. Os resultados, que expressam uma amostra significativa da nossa população, apontaram para 60% de ancestralidade europeia, 27% africana e 13% indígena. Para muita gente apressadinha, isso foi o suficiente para “decretar” que a população branca é maioria no Brasil, interpretação essa que foi reforçada por uma parte da imprensa brasileira que estampou capas de matérias jornalísticas (como foi o caso ao menos aqui no Espírito Santo) com imagens de danças típicas europeias associadas à notícia.

Se tudo isso está sendo um equívoco, o que os dados dessa importante pesquisa realmente podem nos dizer na prática? Para explicar, antes é preciso retomarmos alguns termos (com uma brevíssima explicação) da genética:

1. Gene: É uma pequena parte do DNA. Tomando a ideia de um livro como analogia, o gene é como se fosse uma frase dentro de um livro. Ele carrega uma informação específica, como a cor dos olhos ou o tipo de cabelo. São informações herdadas tanto do lado paterno quanto materno.

2. Genótipo: É o conjunto de todos os genes que uma pessoa tem. Ou seja, é a constituição genética completa. Seguindo a analogia, seria a representação de todas as frases juntas de um livro.

3. Genoma: É o manual completo que contém todas as informações hereditárias de um ser humano. Inclui todos os genes e também partes do DNA que não codificam características, mas que são importantes para o funcionamento do organismo. Seria o livro em sua totalidade, para além das frases, incluindo capa, ilustrações, número de páginas...

4. Fenótipo: É o que a gente vê e percebe: cor da pele, formato do nariz, tipo de cabelo, altura, entre outros. Ele é resultado da interação entre o genótipo e o ambiente (como alimentação, sol, estilo de vida etc). Ampliando a analogia agora para outro gênero artístico, o fenótipo seria a encenação de uma peça baseada no livro.

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Nem sempre a adaptação de um gênero para o outro é a expressão da verdade. Vide, por exemplo, o caso emblemático do livro “Forrest Gump”: seu autor, Winston Groom, não gostou nada da adaptação cinematográfica feita por Robert Zemeckis. No entanto, ambos, filme e livro, são obras importantes. Mas voltemos ao DNA: ainda que com o mesmo texto (genótipo), a apresentação (fenótipo) pode mudar dependendo da iluminação, do cenário, de quem está atuando ou até mesmo do público (ambiente).

 

“Forrest Gump” - Reprodução/“Forrest Gump” (1994)

 

E agora, o que dá para fazer com toda essa conversa sobre genética? Pois bem, a genética é um ramo muito importante para desmistificar entendimentos deturpados acerca da racialidade. Devido ao histórico colonial do Brasil, frequentemente observamos discursos que tendem a minimizar as diferenças em prol de uma ideia de democracia racial, que, apesar de celebrar a miscigenação, não exclui o embranquecimento da população como possibilidade a ser alcançada. E é aí que está o perigo de se reproduzir dados como o da pesquisa da USP sem qualquer contextualização, dando a entender que a população brasileira é, em sua grande maioria, branca e com ascendência europeia.

Mesmo que não haja uma “pureza racial”, visto que nossa história é marcada pela “mistura”, mistura essa promovida historicamente pelo estupro de mulheres indígenas e africanas por homens europeus, ainda assim é possível identificarmos grupos raciais tendo como parâmetros a cor da pele, textura do cabelo, formato dos lábios e nariz, entre outros.

Ao considerar o fenótipo, ou seja, as categorias raciais definidas pelas características físicas, a distribuição do pertencimento étnico-racial (por autodeclaração) no Brasil acena para o inverso do que muita gente circulou sem maior ponderação na mídia. Levando em conta o relatório de População Censitária Segundo cor/raça de 2022, produzido pelo IBGE, teríamos os seguintes percentuais:

BRASIL

RAÇA POPULAÇÃO
Parda 92,1 milhões (43,3%)
Branca 88,2 milhões (43,5%)
Preta 20,6 milhões (10,2%)
Indígena 1,2 milhão (0,6%)
Amarela 850,1 mil (0,4%)

Fonte: IBGE (2022)

 

Levando em conta que a categoria negro/a é junção de pretos/as + pardos/as, o que chegaria ao valor de 112,7 milhões (55,5%) de pessoas autodeclaradas negras no Brasil, os números revelam algo bem diferente dos percentuais genéticos.

Com isso, quer dizer que a pesquisa da USP estaria errada? A resposta precisa ser enfática: Não! O que está errado é esvaziar toda a discussão e divulgar dados tão relevantes de forma isolada, gerando confusão em quem os recebe. Pesquisas genéticas como essa publicada recentemente são fundamentais para o debate sobre relações raciais no Brasil, inclusive por revelarem, com base científica, as violências raciais históricas que marcaram o país durante o período colonial.

Hoje em dia, os testes de ancestralidade estão em alta, especialmente entre brasileiros/as que buscam reconstruir suas origens, em função do apagamento de boa parte dos registros de origens de famílias negras e indígenas. Entretanto, é preciso cautela ao interpretar esses dados. A raça, que utilizamos socialmente, está ligada ao fenótipo, ou seja, às características visíveis do corpo. Saber que há ancestralidade europeia no seu genótipo não altera a forma como você é percebido/a racialmente. O que realmente importa são os traços que seu corpo carrega e como a sociedade te reconhece a partir deles. Isso se chama “heteroclassificação”.

Testes de ancestralidade estão em alta - Reprodução/Freepik

 

Uma pesquisa extremamente importante para o debate foi realizada por Oracy Nogueira no século passado. Seu estudo, publicizado em 1955, continua servindo de base para a interpretação de como o racismo opera no Brasil. O autor interpretou dois “tipos” de racismo (ou “preconceito racial” como definiu o autor à época): o racismo "de origem" (ou "da gota de sangue"), mais comum nos EUA no período da segregação racial, e o racismo "de marca" ou de aparência, predominante no Brasil. No primeiro, a exclusão se baseava no genótipo, mesmo que o fenótipo da pessoa não revelasse essa ancestralidade. Assim, frases que costumamos ouvir no bojo do debate sobre cotas nas universidades e concursos públicos no Brasil como "Meu avô é negro, logo eu posso ser também?", até caberia lá nos Estados Unidos e provavelmente muito mais naquele período caracterizado pelo autor do que agora.

Entretanto, no caso do Brasil, onde opera o segundo tipo (o racismo de marca), a vítima é identificada pelo fenótipo, independentemente da ancestralidade. Aqui, retomar o parentesco para sua própria autodeclaração racial não significa nada pois, reiterando, as pessoas são racializadas a partir de sua aparência e não da origem demarcada, seja ela documentalmente, ou seja, pelo fato de um familiar (como pai, mãe, avó/a) ser racializado. Então, fique esperto/a: ter ascendência predominantemente europeia/africana no seu genoma não significa dizer que você seja branco/a ou negro/a. O racismo, no Brasil, atua a partir do fenótipo!

Davi Barbosa - Arquivo pessoal

 

*Davi Barbosa é mestrando em Educação pelo PPGE-Ufes e licenciado em Ciências Biológicas pela Ufes. Investiga livros didáticos e as relações entre Biologia e branquitude nesses materiais. É pesquisador do LitERÊtura - Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias (Ufes). A revisão conceitual do texto foi feita por Débora Cristina de Araujo, doutora em Educação (UFPR), professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Ufes e coordenadora do LitERÊtura, coletivo que também colaborou com a leitura crítica e revisão.

Fontes citadas:

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas.População Censitária segundo cor/raça - 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relaçõesraciais no Brasil. Tempo social: Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 1, p. 287-308, 2006 [1955].

NUNES, Kelly et al. Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health. Science, v. 388, n. 6748, 2025.

 

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