A maternidade atípica tem desafios específicos e um olhar atento a problemas de saúde mental dessas mães é necessário
Joanna Cataldo* Publicado em 12/05/2024, às 06h00
“As pessoas dizem que eu tenho que controlar a minha ansiedade. Mas é impossível ficar bem mentalmente quando você tem preocupações reais”, diz Meiriellen Evangelista, historiadora, pedagoga e mãe do Nicholas, de 5 anos, que tem diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista).
Ela conta que vive uma luta constante para dar um bom atendimento de saúde para o filho, conciliar o trabalho com a maternidade e garantir o bem-estar da criança apesar das dificuldades financeiras e dos preconceitos da sociedade. “Por ele ser uma pessoa preta e pobre, eu já me preocuparia com o que poderia acontecer com o meu filho mesmo que ele fosse neurotípico. Mas como ele é um indivíduo autista, ele está sempre vulnerável, principalmente por causa das dificuldades de comunicação que ele tem. Fico angustiada com o que pode acontecer quando ele crescer, for abordado por policiais e não conseguir se explicar para eles, por exemplo.”
Assim como Meiriellen, milhares de mães atípicas, como são chamadas as mulheres que têm filhos com autismo, costumam lidar no dia a dia com diversas preocupações, angústias e obstáculos, o que acaba tendo impactos na sua saúde mental.
Segundo a pesquisa “Retratos do Autismo no Brasil”, feita pela Genial Care, uma rede de cuidado para a saúde atípica, em parceria com a Tismoo.me, empresa de saúde para pessoas autistas, as principais dificuldades enfrentadas pelos cuidadores de indivíduos com o transtorno incluem não sentir segurança em relação ao futuro dos filhos, ter que lidar com os custos financeiros dos tratamentos e não ter tempo para descansar ou cuidar de si mesmos. Os problemas foram relatados por, respectivamente, 79%, 73% e 68% dos entrevistados.
Ana Celeste Pitiá, psicóloga e doutora em saúde mental pela USP de Ribeirão Preto, explica que estudos mostram que mães de pessoas com autismo tendem a ter níveis mais elevados de ansiedade e depressão do que mães de indivíduos com deficiência intelectual ou que não apresentam comprometimentos no desenvolvimento psicossocial. Uma pesquisa publicada no Journal of Autism and Developmental Disorders, por exemplo, concluiu que os níveis de estresse de mães norte-americanas que lidam com adolescentes e adultos com TEA é semelhante ao de soldados de guerra.
“O estresse que elas sentem pode resultar em diversos sintomas físicos e/ou psicológicos, como insônia, ira e profundo sentimento de tristeza e desamparo. Além disso, elas podem ter ansiedade, que é marcada por manifestações de inquietação e dificuldade de concentração, e depressão, caracterizada, em essência, pelo humor deprimido, perda de prazer nas atividades que costumava fazer anteriormente, diminuição da libido e falta de interesse por relações sociais”, diz Ana Celeste. “Podemos afirmar, portanto, que essas mães estão sempre à beira de um ataque de nervos”.
Em 2012, o Governo Federal sancionou uma lei que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A norma, também conhecida como Lei Berenice Piana, destaca que toda pessoa com Transtorno do Espectro Autista tem direito a acessar ações e serviços de saúde, o que engloba diagnósticos precoces, atendimento multiprofissional, medicamentos, informações que auxiliem no tratamento, entre outros.
Mas para Jéssica Borges, mulher autista, mãe de um filho com TEA e presidente da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA), o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda tem muito o que melhorar em relação aos tratamentos e atendimentos dados a pessoas com o transtorno. Ela afirma que a rede conta com uma série de problemas nesse quesito, que vão desde a falta de investimentos e serviços específicos voltados para esse público até a formação inadequada dos profissionais da saúde.
“O SUS demora para chamar os profissionais de saúde que prestaram concurso e falta formação específica sobre autismo para os que trabalham com atenção primária”, explica. “As famílias, principalmente as mães, que são as que costumam estar à frente dos cuidados dos filhos, sofrem com as grandes filas que são obrigadas a enfrentar.”
Meiriellen conta que já teve diversos desgastes emocionais devido aos problemas do serviço público. Um deles foi para obter o diagnóstico de autismo, que levou aproximadamente quatro anos para sair. “Eu acho que é certo levar um tempo para investigar a questão e ver se é TEA mesmo. Mas a demora, no nosso caso, não foi para investigar a condição dele e sim para conseguir os médicos necessários. Se todos os médicos estivessem lá, em um ano teriam fechado o laudo”, diz.
A falta de profissionais capacitados para lidar com as necessidades de pessoas com autismo foi outra dificuldade que Meiriellen enfrentou no SUS. Moradora de Carapicuíba, em São Paulo, não estava conseguindo fonoaudiólogos especializados em autismo na UBS em que costumava ir. Além disso, o CAPS infantil do município estava demorando para chamá-los para serem atendidos.
Para não deixar a criança completamente sem tratamento, uma fonoaudióloga da UBS se ofereceu para atendê-lo, mesmo não tendo a formação adequada para lidar com pacientes com TEA. “Ela percebeu que eu estava sem nenhum profissional e estava preocupada com o atraso de fala dele. Então, ela disse que nós aprenderíamos juntas como ajudá-lo”, conta.
A partir daí, a fonoaudióloga percebeu que o Nicolas tinha uma comunicação não-funcional e que necessariamente precisava ser atendido por um profissional especializado em autismo. Então, Meiriellen conseguiu uma fonoaudióloga que atendia na rede particular com preços sociais. “Nicolas começou a falar depois que começou a ser atendido por ela, todo mundo nota a diferença”, diz. “Mas mesmo tendo um atendimento privado agora, nós ainda vamos na fonoaudióloga do SUS. Se eu abrir mão das consultas públicas e depois ficar sem dinheiro para pagar a particular, pode demorar muito para voltar a ser atendida no SUS. Então não abro mão de ir na antiga. Quero ter um plano A, B e C. Essas questões envolvendo a disponibilidade de atendimentos para o meu filho são uma preocupação constante para mim.”
Em nota à reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que têm investido na ampliação e qualificação dos serviços disponíveis, como os Centros Especializados em Reabilitação -Modalidade Intelectual, que prestam atendimento a pessoas com TEA. Além disso, o órgão ressalta que está em processo de qualificação de 15 mil profissionais de saúde, visando aprimorar o atendimento e diagnóstico de autismo.
Outro problema relatado com frequência pelas mães atípicas é em relação à dificuldade para obter tratamento adequado para os filhos por meio de planos de saúde. As reclamações comuns incluem coberturas interrompidas de forma abrupta, ausência de reembolsos, atendimentos negados e liminares não cumpridas.
Embora a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) obrigue os planos de saúde a oferecer tratamentos para pessoas com autismo, em muitos casos, esse direito é negado às famílias, gerando desgaste emocional e estresse para as cuidadoras.
Mirza Lopes, de Rio Branco, no Acre, é mãe de Maria Luísa, uma menina de 7 anos que possui TEA. Ela conta que, após obter o laudo do autismo, solicitou que o plano de saúde oferecesse terapias para a sua filha, mas teve o pedido negado. “Levei a questão para a justiça e ganhei uma liminar. Mas, depois, a operadora demorou muito para arranjar os profissionais adequados. Eu vivia brigando com eles. Quando conseguiram um terapeuta, o profissional não cumpria a carga horária de atendimento que o laudo exigia e não tinha qualificação suficiente. Essa história toda durou anos”, lembra.
Ela explica que esses embates com o plano de saúde tiveram impactos grandes no seu bem-estar psicológico, contribuindo para que desenvolvesse sintomas físicos. “Como um plano de saúde vende um serviço que não está preparado para oferecer? Essas tratativas desgastantes minam a nossa saúde mental. Eu já tinha depressão e, devido a tudo isso e a alguns problemas que tive na creche da minha filha, que não lidava bem com o autismo dela, comecei a perceber com mais intensidade em mim sinais de transtorno de ansiedade generalizada e bipolaridade - ainda não tenho diagnóstico fechado, mas apresento sintomas do distúrbio”, conta.
De acordo com um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor em parceria com a PUC de São Paulo, os tratamentos para autismo estão dentro da categoria que mais envolve processos na Justiça do estado de São Paulo devido a negativas de cobertura pelas operadoras de saúde. Entre 2019 e 2023, 18% das recusas de atendimentos foram para os chamados “transtornos globais de desenvolvimento”, no qual o TEA está incluído.
Na prática, essa porcentagem é quase três vezes maior do que o segundo colocado no ranking de recusas, que corresponde a casos de pessoas com transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e substâncias psicoativas. Ao todo, 6,64% dos processos de atendimentos negados entre 2019 e 2023 foram para indivíduos com essa condição.
Procurada pela reportagem, a Federação Nacional de Saúde Suplementar, que representa 13 grupos de operadoras de planos e seguros privados, não quis se manifestar. Já a Associação Brasileira de Planos de Saúde (ABRAMGE) não retornou o nosso contato.
Durante os dois primeiros anos de vida do filho, Oliver, a redatora Heloísa Moreira, de Curitiba, no Paraná, teve que se dedicar exclusivamente aos cuidados do menino, que hoje tem 5 anos e possui um diagnóstico de TEA. Na época, o marido trabalhava de forma presencial, em um local distante da casa da família e, por isso, ela tinha que cuidar sozinha da criança.
“Eu precisava de um trabalho flexível e modelo home office para conseguir trabalhar e cuidar dele. Era difícil encontrar algo assim e, quando eu encontrei, era para ganhar muito pouco, não compensava. Nesse período, para que eu pudesse voltar a trabalhar, eu tinha que contratar uma diarista para me ajudar a fazer a comida e limpar a casa. Mas com aquele salário não daria para isso. Foi um período bem difícil, até porque foi nessa época que a gente descobriu o meu autismo e o do Oliver. Eu me sentia sobrecarregada, tendo que dar conta de tudo sozinha quando meu marido estava fora, trabalhando”, conta.
Devido ao TEA que possui, Heloísa apresenta hipersensibilidade a toque e barulhos, características que faziam com que ela ficasse mais sensível a algumas demandas da criança nesse período. “Eu precisava de um tempo pra respirar, precisava de espaço. Tinha que ficar um tempo longe das pessoas, do toque...E o Oliver era o contrário. Ele precisava de muito colo, muito toque. Então, eu me senti sufocada. Eu pensava: “Nossa, não consigo ir ao banheiro, não consigo fazer uma refeição, não consigo fazer nada por mim”. Sentia que tinha perdido a minha identidade. Por muito tempo, até me culpei por me sentir assim.”
Depois que o marido conseguiu um emprego home office, Heloísa passou a ter alguém para dividir as tarefas no dia a dia. Com isso, ela conseguiu arranjar um trabalho que ama desempenhar. Ela diz que, hoje, se sente melhor do que no passado: tanto ela como o companheiro estão em empresas que entendem as necessidades de pais atípicos e oferecem assistência e flexibilidade para que os dois consigam se dedicar às necessidades do filho e à vida profissional ao mesmo tempo.
Essa sobrecarga de tarefas relatada por Heloísa é uma queixa comum entre mães atípicas, segundo Jéssica. Para ela, fatores como a ausência de políticas públicas adequadas e falta de flexibilidade no mercado de trabalho contribuem para a rotina desgastante, que pode envolver desde ações voltadas para os filhos, como levá-lo às consultas médicas e cuidar deles no dia a dia, até trabalhar e realizar serviços domésticos.
“Nós exercemos diariamente trabalhos não remunerados, além de lidarmos com a falta de cuidado do poder público e o sucateamento dos serviços básicos, que não dão conta da demanda. Boa parte das famílias que usam esses serviços são compostas por mães solo, negras, indígenas e periféricas”, explica. “Além disso, nós enfrentamos a falta de flexibilidade dos empregos, que é algo necessário para que a gente permaneça no trabalho. Isso para quem consegue trabalhar. Muitas mulheres precisam abandonar a sua vida pessoal, carreira e planos para dar conta da rotina, que é infinita e cansativa.”
Mônica de Lucena, de Recife, Pernambuco, é uma das mulheres que teve que abrir mão do trabalho para poder se dedicar ao filho atípico, Caio Henrique, de 14 anos. Ela, que no passado trabalhava com serviços de beleza, como depilação e design de sobrancelhas, hoje, mantém a família com o valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC), programa do Governo Federal que dá um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência ou familiares de pessoas com deficiência que ganham até ¼ de um salário mínimo – para a legislação brasileira, o autismo se enquadra na categoria de “pessoas com deficiência”, embora especialistas prefiram se referir à condição como um transtorno.
“Eu me sinto mal porque ainda podia produzir muito no mercado de trabalho. Mas, se eu começasse a trabalhar e ganhasse mais do que o limite, eu perderia o BPC”, explica. Pelas regras do programa, apenas quem ganha até ¼ de um salário mínimo tem direito ao benefício – para a legislação brasileira, o autismo se enquadra na categoria de “pessoas com deficiência”, embora especialistas prefiram se referir à condição como um transtorno.
“Queria correr atrás dos meus objetivos profissionais, até pra poder dar uma qualidade de vida melhor para o Caio, porque o programa só dá um salário mínimo, que é muito pouco para dar conta de tudo: temos que comprar medicamentos, roupas...Mas não posso perder o benefício na minha situação atual. Então, fico presa a ele. O BPC é um direito que tira direitos, sabe?”
Hoje, no Brasil, a maternidade solo é a realidade de um total de 11 milhões de mulheres, de acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas. Embora não existam dados recentes que falem especificamente sobre o abandono paterno em famílias que contam com crianças e adolescentes autistas, uma pesquisa feita em 2012 pelo Instituto Baresi mostrou que quase 80% dos pais de crianças com complicações físicas e neurológicas ou doenças raras abandonaram as mães antes que as crianças completassem cinco anos.
Diante da falta de apoio dos pais e dos desafios inerentes à maternidade atípica, muitas mães têm procurado conforto e apoio psicológico em grupos de mães autistas.
É o caso do grupo “Vivendo Com Autismo”, fundado por Mônica e outras duas mulheres em 2021. Além de contar com um grupo no Whatsapp com mais de 670 famílias atípicas, a iniciativa realiza regularmente encontros presencias dos membros e seus filhos em parques e no Sítio Trindade, localizado em Recife.
Nessas reuniões, as mães atípicas participam de rodas de conversa conduzidas por uma psicóloga e fazem exercícios físicos com um personal trainer. Além disso, os filhos podem participar de atividades lúdicas, como recreação.
“O nosso objetivo principal é cuidar de quem cuida, acolher sem julgar. Muitas pedem para não acabarmos com o grupo, porque ele é a segunda família delas”, explica Mônica. “O maior desafio que essas mulheres enfrentam é a falta de valorização. A própria família não acolhe, o marido não aceita o diagnóstico da criança e abandona...Então, no Vivendo Com Autismo, uma acaba sendo psicóloga da outra. Nós compartilhamos os sofrimentos e as vitórias, como quando conseguimos uma terapia, um atendimento médico ou uma medicação para os nossos filhos.”
A psicóloga Ana Celeste afirma que é essencial que as mães atípicas procurem pessoas com quem possam desabafar, seja um amigo, um familiar ou um profissional de saúde. Ela explica que o objetivo da conversa não precisa ser resolver o problema que a mulher está passando, e sim fazer com que ela sinta que seu sentimento está sendo acolhido.
“Elas precisam de um espaço em que possam se mostrar vulneráveis, estressadas ou tristes. Assim, elas sentirão atenuação dos sintomas do sofrimento psíquico. As conversas podem até não resolver os problemas, mas oferecem amparo. Quantas de nós, muitas vezes, não queremos apenas ter as nossas dores escutadas? Isso é empatia. É a capacidade de entender a dor do outro e ficar ao lado da pessoa, apoiando-a.”
*Joanna Cataldo é jornalista e fellow de curso para jornalistas do Dart Center da Columbia University. Fundadora do Projeto Aprovar e Apoiar
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