Entenda as causas e os perigos do novo fenômeno de Bebês Reborn
Yolanda Basílio* Publicado em 02/06/2025, às 06h00
O fenômeno de mulheres adultas comprando bebês reborn não pode ser reduzido à ideia simplista de “brincar de boneca”. Trata-se de um movimento que revela camadas profundas da psique e das necessidades emocionais não atendidas. Em muitos casos, o gesto de adquirir uma dessas bonecas hiper-realistas está enraizado em um desejo genuíno de cuidar — um desejo que não encontra espaço concreto para se realizar no cotidiano. Essa necessidade pode estar relacionada à ausência de filhos, a perdas gestacionais ou neonatais, ao encerramento do ciclo fértil com a chegada da menopausa, ou mesmo à sobrecarga afetiva vivida por mulheres que não têm condições reais de maternar, apesar do desejo. Em contextos onde o cuidado não é possível na realidade, o simbólico emerge como alternativa de expressão afetiva.
O bebê reborn, nesse contexto, funciona como um espelho do mundo interno. Essas bonecas tornam-se projeções de desejos, de dores e de experiências interrompidas. Elas podem representar tanto o sonho de uma maternidade ainda não vivida quanto a busca por um cuidado que foi negado à própria mulher em sua infância. Tal função simbólica pode ser compreendida à luz do conceito de “objeto transicional”, proposto por Donald Winnicott, que descreve objetos como bonecas ou bichos de pelúcia utilizados por crianças para lidar com a ausência e elaborar afetos. Embora formulado para a infância, esse conceito pode ser estendido para adultos que utilizam objetos como mediadores simbólicos de elaboração psíquica. O bebê reborn, portanto, pode ser compreendido como uma tentativa de dar forma simbólica a algo que está em suspensão: um vínculo, um luto, um desejo.
Nas escutas realizadas na Poppins com mães, educadoras e mulheres em geral, é comum o relato de um maternar não vivido ou interrompido. Mulheres que passaram por abortos, lutos não elaborados, infertilidade ou que simplesmente não tiveram filhos muitas vezes carregam dentro de si um desejo de cuidar que não encontra um canal legítimo na sociedade. Isso porque a cultura ainda espera que a mulher “tenha instinto materno”, mas não oferece condições reais para que ela exerça esse cuidado. Faltam estrutura, políticas públicas, redes de apoio e, principalmente, escuta. Quando o espaço para o cuidado é negado, o simbólico — como o reborn — aparece como substituto, ainda que temporário. Contudo, é importante compreender que nem todo uso simbólico é saudável ou inofensivo.
Quando o vínculo simbólico com o bebê reborn extrapola os limites do afeto e se transforma em compulsão, é preciso atenção. Assim como vícios em comida, jogos de azar ou consumo, o uso excessivo dessas bonecas pode apontar para um vazio emocional profundo, uma tentativa de preencher uma falta primordial. Em termos psicanalíticos, podemos entender esse movimento como uma busca incessante pelo objeto que alivie a dor da falta, mas que nunca a satisfaz completamente — um retorno compulsivo que Lacan nomearia como “gozo”. O reborn, nesse cenário, deixa de ser símbolo e se torna sintoma. Quando o cuidado simbólico passa a ocupar o lugar da realidade, há um grito não escutado que precisa de acolhimento, não de julgamento.
Há ainda casos em que a relação com os bebês reborn ultrapassa a esfera do simbólico e adentra o campo do delírio ou da ruptura com a realidade. Há relatos de mulheres que registram essas bonecas como filhos, as levam a consultas médicas, tentam matriculá-las em creches ou mesmo as utilizam em esquemas para obtenção de benefícios assistenciais. Tais episódios demandam um olhar atento do ponto de vista jurídico e clínico, pois indicam sofrimento psíquico que vai além da função simbólica e toca em quadros mais graves, como transtornos dissociativos ou psicóticos. Nessas situações, é necessário acolhimento, sim, mas também responsabilidade. O simbólico não pode servir de fuga para a negação da realidade — cuidar, neste caso, também é saber quando buscar ajuda.
Essas reflexões nos levam, inevitavelmente, à complexidade da maternidade real. Longe do ideal romântico ainda sustentado socialmente, maternar é uma experiência marcada por desafios concretos e intensos: exaustão física, sobrecarga mental, ambivalência de sentimentos, solidão e falta de rede de apoio. A sociedade cobra da mulher um desempenho materno perfeito, mas não lhe oferece condições para que esse cuidado seja possível e saudável. Essa discrepância gera sofrimento e, muitas vezes, silenciamento. Quando a maternidade real não encontra escuta nem acolhimento, o simbólico pode surgir como tentativa de suprir lacunas emocionais. Ainda assim, o cuidado simbólico não deve ser visto como substituto, mas como alerta: ele aponta para uma urgência social que precisa ser enfrentada com políticas públicas, suporte emocional e transformação cultural.
Por fim, é essencial refletirmos sobre a forma como temas sensíveis como esse circulam nas redes sociais. Em um ambiente dominado por algoritmos que favorecem o sensacionalismo e a viralização, discussões sérias muitas vezes ganham contornos distorcidos. Quando o fenômeno dos bebês reborn aparece nas redes, ele é frequentemente tratado com escárnio ou patologização superficial, sem a devida contextualização psíquica e social. Isso contribui para o estigma e reforça preconceitos, em vez de abrir espaço para compreensão. É fundamental ter responsabilidade com a informação que se compartilha. As redes moldam imaginários coletivos, e precisamos ter cuidado com a proporção que certos temas tomam — especialmente quando se trata da saúde mental das mulheres. Antes de opinar, é preciso escutar. Antes de julgar, é preciso compreender.
Na Poppins, trabalhamos com o princípio de que “somente o que é cuidado pode existir e desabrochar”. Entendemos que a compra de bonecas reborn pode ser um chamado simbólico de mulheres que estão buscando um lugar onde possam cuidar — e serem cuidadas. Mas também reconhecemos a importância de acompanhar com sensibilidade, ética e escuta ativa os casos em que essa prática revela feridas mais profundas. Talvez o reborn seja um pedido silencioso de afeto, escuta e pertencimento. Mas quando o símbolo se transforma em fuga, é hora de estender a mão.
Muitas mulheres que adquirem bebês reborn não estão “brincando” no sentido infantil. Estão respondendo a uma necessidade psíquica e emocional de cuidar. Esse desejo pode estar relacionado:
Quando não há espaço seguro para expressar o cuidado, o simbólico se apresenta como alternativa.
Essas bonecas funcionam como projeções do desejo e da dor. Elas representam algo que faltou, ou algo que ainda pulsa dentro — seja um sonho de maternidade, seja o próprio cuidado que a mulher não recebeu na infância.
Compreendo que objetos transicionais (como bonecas, bichos de pelúcia etc.) também podem ser utilizados por adultos como mecanismos de elaboração simbólica.
Nos atendimentos da Poppins e nas escutas com educadoras e mães, notamos como muitas mulheres estão vivendo um maternar não vivido ou interrompido — seja por abortos, lutos não elaborados ou por não terem filhos e não encontrarem outros espaços de cuidado afetivo.
A sociedade espera que a mulher tenha “instinto materno”, mas não oferece condições reais de maternar — nem estrutura, nem escuta.
Nem todo uso simbólico é saudável. Como tudo que envolve desejo, dor e afeto, o uso do reborn pode escorregar para o excesso, e isso merece atenção.
Assim como nos casos de vício em jogos de azar, redes sociais, comida ou compras, o excesso muitas vezes esconde uma falta. É o desejo de preencher, compulsivamente, um buraco emocional que segue aberto — e que precisa de acolhimento terapêutico, não de substitutos.
Todo excesso esconde uma falta. Onde há compulsão, há um grito não escutado.
Alguns casos envolvendo bebês reborn têm gerado preocupação também no campo jurídico. Existem situações em que:
Esses episódios indicam um rompimento com a realidade e, muitas vezes, apontam para quadros mais graves de sofrimento psíquico. É aí que a fronteira entre o simbólico e o patológico precisa ser cuidadosamente observada — com acolhimento, sim, mas também com responsabilidade.
O simbólico não pode se tornar subterfúgio para negar a realidade. Cuidar é também saber quando buscar ajuda.
Na Poppins, trabalhamos com o princípio de que “somente o que é cuidado, pode existir e desabrochar.” A compra de bonecas reborn pode ser vista como um chamado simbólico de mulheres que estão buscando um lugar onde possam cuidar — e serem cuidadas. Mas também nos alerta para a necessidade de acompanhar com sensibilidade e ética os casos em que essa prática revela feridas mais profundas.
Talvez o reborn seja um pedido silencioso de afeto, escuta e pertencimento. Mas quando o símbolo vira fuga, é hora de estender a mão.
*Yolanda Basílio é psicóloga, psicomotricista e consultora parental. Atua com Educação Infantil há 15 anos e hoje está como CEO da POPPINS, um ecossistema todo dedicado aos cuidados da Primeira Infância.
*Com edição de Marina Yazbek Dias Peres
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