Promover um currículo escolar que estimule a autonomia e o respeito à diversidade inclui desconstruir as perspectivas do movimento
Marcos Santos Mourão (Marcola) * Publicado em 21/08/2023, às 10h00
Descolonizar o currículo ou o conhecimento curricular tem sido uma tarefa constante para escolas que buscam semear territórios mais democráticos, que valorizem as diferenças e incorporem os significados elaborados pelos vários grupos que constituem a sociedade. Não se trata apenas de estudar os outros lados da história que colocam em cheque a narrativa dos colonizadores por meio de livros didáticos, mas buscar uma mudança estrutural das práticas e ambientes de aprendizagem. Essa reflexão se inicia na reformulação dos saberes mediados pelos educadores, reflete na revisão curricular e pode atravessar a dinâmica escolar como um todo.
Nos últimos anos, muito se tem falado sobre a necessidade de descolonização dos currículos no Brasil, especialmente a partir da Lei 10639/2003, que orienta o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Fundamental para orientar a prática pedagógica, essa discussão refletiu principalmente nas nas áreas de Linguagens Visuais e de Literatura e História Brasileiras.
É preciso levar em consideração, no entanto, que a dominação colonial não opera apenas no campo da História e Literatura, oferecendo explicações homogeneizadoras, elaboradas pelo grupo dominante, mas atua também normatizando as experiências do corpo. Isso porque boa parte das práticas corporais negam o caráter multicultural a favor de uma forma particular de conceber o mundo.
Partindo do pressuposto de que o corpo é um território em constante disputa e que também normaliza práticas coloniais, discutir esse assunto dentro e fora da sala de aula, é uma forma de desconstrução das perspectivas do movimento. Portanto, promover uma educação que estimule a autonomia dos alunos e o respeito à diversidade, também inclui repensar disciplinas como Educação Física.
Além de ser fundamental como parte da educação integral do indivíduo, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, a Educação Física permite que os alunos experimentem uma maior liberdade em relação às limitações das salas de aula. Vale lembrar que, nos currículos, essa disciplina geralmente é aquela que valoriza e fortalece a linguagem corporal em relação às outras formas de linguagem. Descolonizar a mente e o corpo.
Se por um lado a Educação Física é crucial na transformação pedagógica do ser humano, por outro, ela também é responsável por reproduzir visões hegemônicas na formação de sujeitos universalizados, a partir de práticas corporais, predominantemente brancas, euro estadunidenses, heteronormativas, cristãs e masculinas.
Muitas escolas abrigam apenas práticas esportivas eurocêntricas ou de origem estadunidense como futebol, voleibol, basquetebol e handebol em condição de vantagem no currículo, frente às práticas esportivas de matriz indígenas e africanas, por exemplo. Com foco apenas nessas práticas, acabam transmitindo a ideia de uma motricidade limitada aos esportes coletivos de maior alcance midiático, com separação de gêneros, de origem cristã (muitos foram concebidos em Associações Cristas de Moços), nos quais os homens são mais valorizados.
É possível pensar em outras formas de atividades que incentivem uma pedagogia que procure impedir a reprodução consciente ou inconsciente dessa cultura corporal dominante. Pensando nisso, algumas escolas trabalham com práticas que valorizam o patrimônio dos grupos minoritários e desfavorecidos, disponibilizando aos estudantes instrumentos indispensáveis para compreender por que determinadas práticas e formas de realizá-las são legitimadas, enquanto outras são desvalorizadas.
Com uma proposta pedagógica mais inclusiva, o espaço ekoa, por exemplo, ao inserir sequências didáticas sobre os jogos de matriz africana e indígena, proporciona aos estudantes a oportunidade de explorar aspectos de diferentes povos e culturas.
Uma etapa fundamental da preparação da sequência de jogos indígenas é o momento de pesquisa, em que são abordados tópicos como o local onde alguns povos realizam suas brincadeiras, as diferentes formas como brincam, as razões por trás do não uso de roupas e a forte ligação de suas brincadeiras com a natureza. É nesse momento que as crianças refletem sobre a diversidade dos povos indígenas em seus modos de pensar e agir, questionando a ideia de homogeneidade.
Trata-se de uma etapa de sensibilização. Um exemplo, é a apresentação de material impresso sobre a Aldeia Nasêpotiti, comunidade Indígena no Panará -PA, onde compartilha-se uma sequência de fotos das crianças jogando a brincadeira da onça. Em seguida inicia-se uma conversa com intuito de fazer com que os estudantes percebam o local, as ações do jogo, quem participa e quais são as regras.
Após essa etapa, as crianças escolhem um ambiente onde possam colocar em prática - com adaptações necessárias - o que aprenderam sobre as regras da brincadeira. Ao final, uma roda de conversa é realizada para socializar o que foi experimentado, o que deu certo, o que pode melhorar, que ajustes foram necessários, etc.
Outros jogos tradicionais de origem indigena, como "Gavião e Passarinho", "Onça e Porco" e "Mandioca", que trazem elementos em comum com algumas das brincadeiras do cotidiano das cidades, são explorados para ampliar o repertório das crianças e permitir que elas tragam outras experiências corporais. Por meio delas, o trabalho coletivo e o contato com a natureza podem ser valorizados.
Desta maneira, com um currículo mais plural, as aulas de Educação Física deixam de ser vistas apenas como um espaço exclusivo para as crianças se movimentarem, passando a ter também como objetivo analisar os discursos sobre a ocorrência social das práticas corporais - as brincadeiras, as danças, as lutas, as ginásticas, os esportes, e os interesses que os movem, como são produzidas, quais relações de poder estão presentes, quais grupos estão definindo seus significados, tematizando-as e problematizando-as sempre que necessário.
* Marcos Santos Mourão é especializado em Neurociências, Educação e Desenvolvimento (PUC-RS), Marcos Santos Mourão (Marcola) é graduado em licenciatura plena pela Escola de Educação Física e Esportes da USP (EEFE-USP), atua com formação de Corpo em Movimento para professores de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. É selecionador do Prêmio Educador Nota Dez, da Fundação Victor Civita, professor, coordenador de especialistas e assessor curricular do espaço ekoa, em São Paulo-SP.
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