Os advogados Douglas Ribas Jr. e Carlos Alberto de Santana* explicam os direitos das mulheres trans quando o assunto é violência doméstica
Douglas Ribas Jr. e Carlos Alberto de Santana* Publicado em 17/10/2024, às 06h00
Antes de adentrarmos ao artigo propriamente dito, vale registrar que recentemente estivemos no marcante evento em homenagem à Maria da Penha, no qual houve a comemoração dos 18 anos da lei que leva o seu nome.
O Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco foi tomado por presenças ilustres, depoimentos emocionados, profundos agradecimentos, personalidades notáveis do mundo jurídico e da sociedade como um todo.
Mais do que um evento, presenciamos uma verdadeira aula, onde houve discussão sobre os números dos casos de violência doméstica que infelizmente até hoje ocorrem, a quantidade de mulheres já atendidas por essa lei que vem sendo constantemente aprimorada, tanto no que diz respeito ao seu texto, quanto à sua aplicação, o triste número de vítimas fatais, outro tanto de mulheres que escaparam e a sinceridade em admitir o que precisa ser melhorado nessa lei que é modelo mundo afora na matéria por ela regida.
Pois bem, feita essa introdução para pontuar o quanto ficamos honrados em presenciar o evento em questão, que contou com a presença da própria Maria da Penha, vale lembrar de que no blog do nosso escritório já publicamos artigo sobre a possibilidade de medida protetiva dessa lei em casos de brigas de vizinhos. Se tiver interesse nesse assunto, basta clicar aqui.
Vamos ao título do artigo! Em 2022, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada em casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero. O relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz – uma autoridade na matéria, que não por acaso estava presente no Salão Nobre da São Francisco e brindou os presentes com seu discurso sobre a lei - considerou que, se a vítima é mulher, independentemente do sexo biológico, tendo a violência ocorrido no ambiente familiar, a exemplo do caso em questão, onde um pai agrediu sua filha trans – a lei especial deve ser aplicada, consoante decisão judicial:
“(...) seu pai a segurou pelos pulsos, causando lesões visíveis, ela se desvencilhou, mas foi agarrada novamente e arremessada de lado contra a parede, onde bateu com a cabeça, e em seguida a empurrou algumas vezes de costas contra a parede, no momento em que ele soltou um dos pulsos para pegar um pedaço de pau para agredi-la, a vítima conseguiu se desvencilhar e saiu correndo, sendo perseguida pelo agressor até quando encontrou uma Viatura da PM, que prestou socorro conduzindo-a até esta Delegacia para elaboração da ocorrência. Vítima pediu medidas protetivas (...)”.
O Ministro Schietti baseou-se na doutrina jurídica ao afirmar que o fator determinante da aplicação da Lei Maria da Penha é o gênero feminino, o que não está necessariamente vinculado ao sexo biológico. O objetivo da lei é combater a violência doméstica contra a mulher devido ao gênero, não ao sexo.
Essa decisão é especialmente relevante no Brasil, país que vergonhosamente ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de violência contra travestis e transexuais. Segundo o Dossiê sobre Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais em 2023, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil registrou 145 assassinatos de pessoas trans em 2023. Além disso, 10 pessoas trans cometeram suicídio após sofrerem violências ou devido à invisibilidade trans. O número de assassinatos de pessoas trans no Brasil cresceu mais de 10% em relação a 2022, quando foram 131 assassinatos. A pessoa mais jovem assassinada em 2023 tinha apenas 13 anos.
O perfil das vítimas é em sua maioria formado por mulheres trans negras e jovens, com cerca de 30 anos. São Paulo é o estado com maior número de registros de mortes de pessoas trans, com 19 casos. Em 2º lugar está o Rio de Janeiro (16), seguido do Ceará e Paraná, ambos com 12 vítimas.
A Antra explica que o número pode ser maior porque não existem dados oficiais sobre a violência contra essa população no Brasil.
O Brasil ainda detém a triste marca de ser o país que mais registra crimes contra a vida de pessoas trans pelo 15º ano consecutivo.
A decisão do STJ já trouxe mudanças em órgãos como delegacias, Ministério Público e Defensoria Pública, que lidam diretamente com casos de violência contra a mulher.
Na decisão acima indicada o Ministro Schietti observou que as condutas descritas são tipicamente movidas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. A forma como se deram as agressões relatadas são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas.
As delegacias de polícia são geralmente o primeiro local procurado por mulheres vítimas de agressão. Muitas unidades da Polícia Civil já oferecem atendimento especializado para mulheres, incluindo as trans, em algumas regiões do país.
Em São Paulo, as Delegacias de Defesa da Mulher investigam crimes de violência doméstica e contra a dignidade sexual que tenham como vítimas pessoas com identidade de gênero feminina, incluindo mulheres cisgênero, trans e travestis.
O Ministério Público de São Paulo (MPSP) também tem dedicado atenção às questões de violência de gênero contra mulheres trans, promovendo seminários e cursos para ampliar a compreensão da Lei Maria da Penha, buscando assegurar sua aplicação a mulheres trans.
A relevância desse assunto reside, não só na necessidade de proteção a um público cujas agressões, não raramente, têm início dentro do seu próprio seio familiar, mas também como inovação para que outros sujeitos que merecem a proteção legal, a despeito de que seus interesses não constem expressamente do rol de protegidos da lei possam se ver por ela socorridos em casos de necessidade.
*Douglas Ribas Jr. e Carlos Alberto de Santana são advogados e sócios do escritório Douglas Ribas Jr. Advogados
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