A mãe real é a mãe possível

Entenda como a pressão social afeta a experiência materna e a importância de aceitar a imperfeição da mãe real

Myriam Scotti* Publicado em 03/12/2025, às 06h00

É no avesso, na desarmonia dos tons, no emaranhado das linhas que mora a verdadeira beleza do maternar - Myriam Scotti - Foto: Canva Pro

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Assim que confirmei a gravidez do meu primeiro filho, cerquei-me de leituras sobre o período da gestação e cuidados com o bebê. Estava certa de que isso garantiria que eu não fosse surpreendida, como se a literatura especializada fosse capaz de suprir a realidade.

Ledo engano. Supus que enfrentaria um mar de águas calmas, mas fui arremessada para a realidade de me sentir completamente à deriva, um misto de tristeza, preocupação e culpa por não perceber em mim qualquer sentimento parecido com a felicidade de que tanto ouvira falar. Meu universo fora reduzido a um quarto, de onde eu só saía para tomar banho e me alimentar, com passos lentos e cuidadosos, pois estava operada e o corte doía e minha barriga flácida e meu peito vazava. Onde estava a beleza do maternar? Não me reconhecia mais, acabara de ser redefinida pela maternidade. Quem quer que eu tenha sido até 2010, morreu naquela sala de parto.

Meu cérebro acabara de ser reprogramado e só se ocupava daquele bebê. No entanto, a vida lá fora não desacelerou para aguardar o luto de mim mesma. Os tempos modernos não abrem espaço para nos recuperarmos de traumas, antes demandam que estejamos prontas no dia seguinte. Então, depois de parir, a mulher contemporânea precisa estar em forma, feliz e bem disposta para dar conta de seus papéis múltiplos.

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Claro que falhei. Ainda bem! Ao perceber que não daria conta sozinha, procurei a terapia para tentar me reorganizar. Dessa maneira, compreendi que ceder à pressão social é mergulhar em culpa diariamente, aliás sentimento este que parece estar colado ao exercício da maternidade. Mas, precisa mesmo ser assim? As mães frequentemente se comparam com figuras idealizadas que a sociedade projeta, levando à crença de que não estão fazendo o suficiente por seus filhos. Este sentimento foi, ao longo dos últimos anos, exacerbado por fatores como a pressão das redes sociais, onde se testemunha constantemente a “perfeição” da maternidade na vida de outras mulheres.

Todavia, mais pertinente para o momento em que vivemos, de maior liberdade de escolha para as mulheres, inclusive quanto a se expressar sobre os seus desejos ou martírios, reconhecermos que a maternidade está longe de ser apenas a beleza bem-acabada de uma tapeçaria concluída a contento. Na verdade, o momento nos convoca a desconstruir o pensamento ordinário que geralmente nos obriga a rejeitar as falas sobre os incômodos e frustrações que acometem tantas mulheres depois que se tornam mães.

Penso que nunca foi tão urgente subverter o sentido do belo para alcançar a compreensão de que é no avesso, na desarmonia dos tons, no emaranhado das linhas que mora a verdadeira beleza do maternar. A maternidade é um processo sempre em construção, uma obra permanentemente inacabada, daí afirmarmos ser lugar-comum admirar apenas o que está finalizado, estático feito obra em exposição, quando o ideal é buscar os meandros, investigando o movimento e o percurso, jamais o fim, para entender que as mulheres, seres humanos que são, serão sempre rascunhos, pessoas sempre em busca do porvir. Nada mais injusto, portanto, que virar as costas para o processo doloroso da transformação e nos interessar somente pelo que aparenta ser perfeito, desdenhando a incompletude que é exatamente o que nos move a seguir adiante.

Pois bem, se cada ser humano é único, os sentimentos também são diversos e não mercadorias em série como muitos ainda querem que acreditemos. Já faz bastante tempo que escutamos ser a maternidade algo sublime e quem ousa sentir qualquer coisa que não seja positiva está errado, doente ou, mais desarrazoado ainda, não ama os filhos.

Depois de catorze anos imersa na maternidade de meus dois filhos, penso que o melhor é cada mulher encontrar o seu jeito de ser a mãe possível. Isso porque a “mãe possível” enfatiza que a maternidade envolve imperfeições e que ser mãe implica aceitar que nem sempre se dará conta de tudo. A maternidade contemporânea apresenta um campo de complexidade que se afina com as transformações sociais e culturais vivenciadas pelas mulheres. Nesse contexto, o conceito de "mãe possível" se destaca como uma nova abordagem, fecundando a ideia de que a maternagem não precisa seguir um modelo idealizado e rígido. Hoje, percebe-se que o maternar pode ser exercido de forma diversa, mas as mulheres frequentemente se vêem sobrecarregadas pela necessidade de equilibrar suas responsabilidades profissionais, relacionamentos e autocuidado.

E é nesse ponto que trago o conceito da "mãe possível" como aquela que reconhece suas limitações e aceita que a maternidade envolve uma combinação de acertos e erros, tendo em vista que cada mulher carrega sua própria história, desafios e contextos sociais, e o que é viável para uma pode não ser para outra. Essa aceitação das imperfeições encoraja o reconhecimento de que ser uma boa mãe não significa corresponder a um ideal inatingível. Muitas vezes, o impacto que as mães têm sobre suas crianças não está na perfeição, mas na dedicação que oferecem. Quando nós nos permitimos errar, a culpa se dissolve na aceitação de que a imperfeição é uma parte intrínseca da criação dos filhos. Esse reconhecimento promove uma mentalidade mais saudável que prioriza o bem-estar emocional da mãe, facilitando que ela vivencie sua maternidade sem tanta autocrítica.

Trata-se de uma evolução que propõe uma maternidade mais realista, que valoriza a autenticidade sobre a perfeição. Avalio que essa mudança de perspectiva pode ser não apenas libertadora, mas essencial para o desenvolvimento saudável da sociedade como um todo.

*Myriam Scotti é escritora. Nasceu em Manaus, formou-se em direito pela Universidade Federal do Amazonas, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e, desde 2014, dedica-se exclusivamente à escrita literária. Publicou livros infantis, romances e poesia. Tudo um pouco mal é sua estreia no gênero crônicas.

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