Muitos proprietários não querem que crianças vão morar em seus imóveis e recusam propostas de aluguel vindas de famílias e mães solo
Erica Chaves* Publicado em 31/10/2025, às 06h00
Esta reportagem começa com um story no Instagram da Verônica Linder, influenciadora, mãe solo de 2 meninas, engajada em causas importantes. Ela – com as filhas – foi despejada. Acontece que a dona do apartamento na zona sul do Rio de Janeiro não quis renovar o contrato e deu 30 dias pra elas saírem de lá.
Você imagina uma mãe solo, microempresária que criou uma marca de almofadas de amamentação (que ela mesma faz e vende) com duas crianças parando tudo pra procurar outro lugar pra morar que caiba no bolso na mesma região, empacotar tudo e mudar nesse prazo?
Fiquei sem fôlego só de ler o parágrafo anterior sem nem vivê-lo.
A Veronica foi pras redes desabafar. E recebeu mensagens das seguidoras dizendo que era um absurdo, que ela poderia procurar uma advogada, que tem direitos....
Só isso já dava uma bela matéria no site. De um lado as pessoas que não tinham seus contratos renovados e em apenas 30 dias teriam que mudar tudo que já estava planejado e assentado na vida; e do outro, os representantes de quem tem um registro de imóvel em seu nome discorrendo sobre a posse e o direito de mandar e desmandar quando quiserem. Quanta gente não se identificaria? A maioria, já que no Brasil poucos podem ter uma casa pra chamar de sua.
Mas lembram do título ONDE AS CRIANÇAS VÃO MORAR? O assunto aqui é outro. Acontece também que a Veronica contou que estava tentando cumprir todos os prazos impostos e obedecer tudinho, mas estava com dificuldade de conseguir um novo lar. E tudo porque ela contava, claro, que tem duas filhas de 7 anos e é autônoma.
Verônica parou pra pensar...não era a primeira vez que encontrar casa era um problema. Levou um mês e meio pra conseguir chegar na casa de onde querem que ela saia.
“Eu chegava com as crianças pra elas verem também se gostavam da casa, aí me diziam que eu era a primeira. Eu enviava os documentos, mas de repente era informada que uma pessoa alugou antes. Consegui alugar porque o apartamento era da amiga, da amiga, da amiga...”. Mas ela não quis renovar o contrato.
Ela já ouviu que proprietários não gostam de alugar para famílias com crianças porque elas destroem a casa. Ao que ela respondeu certa vez: “mas se algo se quebrar eu vou consertar, afinal, é o que está na lei”. Em outra tentativa questionaram: “então quem vai pagar o aluguel se você (autônoma e mãe solo) ficar doente?”.
Amigo: os documentos estavam corretos, todo mundo fica doente, o Brasil tem milhões de autônomos e autônomas, ninguém deixa de pagar as contas por isso (deixa por outros motivos que não vêm ao caso aqui).
Foi aí que Verônica viu que não estava sozinha. Começou a receber mensagens assim: “moro próximo a Florianópolis e alugar casa tendo criança é muito difícil. Mãe solo pior ainda...pedem valores absurdos de caução”; “já saí de apartamento porque a síndica não gostava de mim por eu ser mãe solo e chamava a polícia até quando eu estava assistindo filme com minha filha e as alegações eram que eu estava bebendo e falando alto”; “tem anúncio aqui em Manaus que coloca ambiente familiar, mas logo vem que é proibido crianças...”; “eu tenho uma filha e também passei por isso, mas quando aconteceu comigo eu falei pra imobiliária que estava errado e pediram desculpas...”; “fui olhar um apartamento e a proprietária falou pra marcar a visita porque o casal que estava na minha frente tinha 3 filhos e ela não queria alugar pra eles. Foi aí que falei que eu também tenho filhos e ela ficou com vergonha, procurando justificativa...”; “tive sorte de conseguir alugar de uma mãe que tinha passado por um monte de coisa como eu com minha filha”; “aqui nos EUA as crianças também não são bem-vindas...uma vez visitamos uma casa com 2 quartos e quando viram a gente chegar com 2 crianças disseram que a casa só comportava 1 casal”; “aqui na Irlanda fiquei 2 anos procurando casa porque ninguém me aceitava com criança...só consegui porque participei de um sorteio”; “será que é um problema mundial? Aqui na Espanha fomos recusados por 3 proprietários por termos uma criança na família”.
É...um problema mundial...infelizmente. Tantas situações que custa a acreditar que são reais.
Se esta parcela da população não quer, ONDE AS CRIANÇAS VÃO MORAR? De acordo com a Ana Claudia Cífali, coordenadora jurídica do Instituto Alana, este é um caso de segregação e intolerância que não seria aceito se fosse praticado contra idosos ou negros. “Ao aceitar e tolerar esta situação contra crianças e adolescentes sem punição estamos – como sociedade – dizendo que isto é aceitável”.
“Se fala sobre a criança ser o futuro, mas para isso precisamos garantir o direito no presente”, completa Ana Claudia. É preciso toda uma aldeia para cuidar de uma criança. Muitos conhecemos esta frase, mas não podemos perdê-la de vista porque o direito da criança é dever de toda a sociedade e todos devem zelar e como se diz 'meter a colher' caso presencie este tipo de situação.
O Artigo 227 da Constituição Federal estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar os direitos de crianças e adolescentes com absoluta prioridade, protegendo-os contra negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ele serve como base para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e determina a proteção integral.
Discriminar inquilinos com crianças é crime e, portanto, o poder judiciário pode ser acionado se necessário. Algo que Luamar poderia ter feito, mas preferiu não fazer por receio depois de passar pelo preconceito.
“Adoramos a casa, a corretora falou na frente da minha filha que podíamos nos mudar no mesmo dia se quiséssemos, pediu os documentos, disse que iam fazer o contrato e no dia seguinte respondeu que não queria criança”, conta.
Ana Claudia enfatiza mesmo sem processo é possível chegar a um acordo colocando qualquer desconforto do proprietário sobre danos ao imóvel no contrato para garantir uma melhor moradia para a família. “A infância é um período fundamental do desenvolvimento e se sentir seguro e protegido é importante para o desenvolvimento integral, que inclui a criação de vínculos com o território e os vizinhos”, completa a coordenadora.
Ana Claudia conta que o movimento Childfree tem uma base legítima contra a maternidade compulsória, mas que depois passou a se referir a restrição de direitos das crianças e aí se tornou um movimento de restrição às crianças e às mulheres, que são as principais cuidadoras, e estão cada vez mais sozinhas.
“Estamos falando de uma questão ética aqui. Ninguém precisa gostar de criança para respeitar os direitos dela e algumas atitudes demonstram como a sociedade está individualista e perdeu o senso de coletividade”, explica Ana.
Em alguns casos, como o de Luamar, que precisou se mudar algumas vezes, a mãe, além da solidão de não se ver amparada pela sociedade, se sente culpada. “Essa culpa das mudanças eu carrego também. Nos mudamos 4 vezes e nossa filha vai fazer 8 anos...está na sexta escola e já estou pensando na próxima mudança porque o lugar onde vivemos não é bom e tá difícil conseguir outro lugar”.
*Erica Chaves é jornalista e faz parte da rede de jornalistas pela primeira infância.
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