Pais adotivos muitas vezes ouvem esse tipo de pergunta e o colunista Antoune Nakkhle, pai da Gabi, nos traz uma reflexão sobre isso
Antoune Nakkhle* Publicado em 04/04/2024, às 06h00
Como vocês sabem, sou pai branco de filha preta. Sabem também que Gabriela veio por adoção. O que muitos não sabem, é que fui ator profissional por 17 anos e, também por isso, sempre tive o hábito de ir ao teatro.
Certa vez, resolvi ir a mais uma estreia e vivi uma situação sem noção que me deixou bem irritado. E sem ação também.
Fui assistir a uma peça de teatro que falava das dores e amores da maternidade e de todo o processo. O texto traçava um paralelo entre o parto de uma pessoa ao dar luz a uma criança e o “parto” que é o trabalho do ator ao longo da carreira. Tratava-se de um monólogo emocionante e a atriz, muito talentosa.
Ao final do espetáculo, logo na saída, encontrei o diretor. Conversamos, parabenizei-o pela direção da peça quando, naturalmente, com toda a empatia e carinho, o diretor, que estava prestes a se tornar pai biológico, disparou:
— Que bom que você gostou da peça! Se emocionou?! Deve ter dado aquela vontade de ter um filho de verdade, seu mesmo, não deu?
Gelei. O que eu respondo para esse idiota?
—É, porque no fundo sempre fica aquela vontade de ver a mulher da gente com o barrigão crescendo com o filho da gente por dentro, imaginando com quem ele será parecido...
Ele insiste na grosseria! É muito sem noção.
—A gente que tem filho biológico, que acompanha de perto a gestação acontecer durante os nove meses, como você viu no espetáculo, sabe como é maravilhoso...
Que escroto, tá me chamando de pai de segunda linha?
—Tô perguntando porque você não viveu isso.
Agora chega! Nem mais uma palavra...
—Por outro lado é lindo adotar, admiro vocês, querido. Mas...
Querido? Tá a fim de briga?
—Não deu vontade de ter um filho com a carinha de vocês, o pezinho parecido?
Deu. Deu vontade de partir para cima e bater a cabeça dele na parede até quebrar os dentes, o nariz e o que mais fosse possível desse infeliz.
Muitas vezes, ficamos sem reação quando ouvimos absurdos como estes porque estamos falando de paternidade. É duro ficar sem reação. Acho que é assim que minha filha se sente quando sofre racismo. Ela e todas pessoas pretas.
Quando o assunto é racismo ou adoção, todos sabem tudo, principalmente os brancos e que nunca adotaram. Não pedem licença para fazer perguntas invasivas e seguem em frente. Afinal, é assunto que está na boca do povo.
Eu não sou um arremedo de pai. Minha filha não é um arremedo de filha. Somos pai e filha e isso ninguém desfaz.
O tempo passou.
Dois anos depois, num domingo à tarde, fui ao cinema com Gabriela. Nem me lembrava daquele episódio. De repente, na fila da pipoca, dei de cara com o tal diretor e sua nova namorada.
— Quanto tempo, Antoune!
—Tudo bem, Fabiano?
—Tudo bem e com você? Essa é Vitória, minha namorada.
—Comigo tudo ótimo. E essa é a Gabriela, já está com 5 anos.
—Como é linda! E que olhos!
—Verdade. Olhos de jabuticaba. Iguais aos meus.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 19 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta.
Quer incentivar este jornalismo sério e independente? Você pode patrocinar esta coluna ou o site como um todo. Escreva para contato@marianakotscho.com.br
Deu certo a adoção da sua filha?
"Cabelo ruim" : expressão é racista e deve ser eliminada do vocabulário
"Sua macaca, cor de bosta!": minha filha sofreu racismo na escola
Você não tem medo de a criança ser revoltada?
Quem tem medo de ter um filho preto?