Papo de pai: o colunista Antoune Nakkhle conta como foi que a filha Gabi nasceu para ele por meio da adoção
Antoune Nakkhle* Publicado em 25/05/2024, às 06h00
Sempre ouvi dizer que, quando um casal hétero engravida, começa a se transformar, a se tornar pai e mãe ao longo dos nove meses de gestação. Barriga da parceira crescendo, idas ao médico, enxoval, chá de bebê, escolha do nome, quarto da criança. Tudo isso e o entorno que envolve os futuros papais e mamães contribuem para que uma pessoa comece a ganhar intimidade com este universo. É o que dizem.
E quando o filho vem por adoção, como será aguardar seu filho sem tudo isso que constrói o tal “universo paternal”? Essa era a pergunta que martelava na minha cabeça durante todo o processo no fórum.
Como será quando eu vir o bebê pela primeira vez? Nossos olhares vão se cruzar olho no olho quando nos virmos pela primeira vez? Afinal, como não havia conversado com o bebê durante os famosos nove meses de gestação, eu ficava bem inseguro e tentando construir verdades dentro de mim para diminuir minhas preocupação e ansiedade. Bobagem, não adiantou nada.
Minha história sempre teve um componente a mais: meu pai faleceu repentinamente quando eu tinha dez anos; não tive oportunidade de atravessar a vida na companhia dele. Pronto: sem os nove meses da gravidez e sem memória de como meu pai teria me abraçado nos momentos mais importantes da minha vida, sem a lembrança da cumplicidade e da presença dele na minha vida, mais uma dúvida se instalou em mim. Em que momento vou virar pai? A criança chega e pronto, virei pai? Eu saberei ser pai?
O pai que eu queria ser era um pouco dos pais que eu fui construindo na minha cabeça, vendo pais de amigos meus, vizinhos ou tios e primos que eu conheci ao longo da vida e que eu admirava, achava que tinham atitudes legais, coerentes e que faziam sentido para mim.
Não sei se todo pai por adoção pensa nessas coisas, mas eu ficava me fazendo essas perguntas, assumo para você.
E para ajudar, durante o processo de adoção, todos à minha volta vinham tirar a prova dos nove: E aí, vai mesmo adotar? Tá dando medo agora que vocês já estão na fila? Me conta: o que você tá sentindo de verdade?! Olha lá, depois não pode dar um passo atrás! Não tem medo de se arrepender?
Tive medo, sim. O medo que eu senti, após me tornar pai, foi de voltar para o “deserto” onde sempre me vejo quando o assunto é paternidade por adoção. Sem companhia. Sem cumplicidade. É você com você mesmo.
Percebi que mesmo aqueles que amam você para valer podem ser inadequados. Por amor, vá lá, mas são. E nem percebem. Afinal, como eu costumo dizer, a adoção do seu filho é assunto que está na boca do povo, parece até que é assunto de domínio público, embora seja uma decisão particular, pessoal e intransferível de quem adota.
Vizinho toca a campainha:
— Tudo bem, Antoune? Desculpe chegar sem avisar antes
— Oi, João, tudo bem, e com você? Sem problemas, posso ajudar?
— Acho que sim. É verdade que vocês estão adotando um bebê?
— Sim.
— Minha filha está com quatro anos e não quer mais ficar no berço. Este berço está novo, tem um design lindo que eu mesmo desenhei e mandei fazer (sou arquiteto e designer). Caso você ainda não tenha berço, se importa em dar uma olhada lá em casa para ver se interessa para vocês? Você não se ofende?
— Claro, João, que legal! Será o primeiro presente da minha filha. Me ofender por que?
No departamento de RH da empresa em que eu trabalhava quando Gabi estava para nascer:
— Bom dia. Com licença. Por favor, como eu faço para incluir um dependente meu no seguro saúde. É que vou ser pai...preciso preencher algum papel antes?
— Parabéns! Quando nasce o bebê?
— Não sei ainda, pois será por adoção.
— Que lindo! É simples; quando nascer é só trazer a certidão de nascimento. Caso demore para sair, basta pedir a declaração de nascido no Fórum, eles devem ter isso ou algo que comprove tudo direitinho. É adoção legal, certo? Aqui na empresa só incluímos dependente adotado se for adoção feita corretamente, ok?
— Sim, sim, é adoção legal. Tudo bem, obrigado.
— Parabéns pelo gesto tão nobre, essa criança já vai nascer com sorte e vocês serão abençoados, você vai ver. Felicidades!
Eu já estava me tornando pai, mas não percebia.
Sabe quando a gente vai ao zoológico e tem um macaco naquelas jaulas disfarçadas de natureza e os visitantes ficam jogando (mesmo que proibido) pipoca para ele pela grade? Foi assim que passei a me sentir quando decidi ser pai por adoção. Porque a adoção parece uma atração de circo, é um evento quando alguém decide adotar, pois não é algo visto e sentido como natural. Afinal, é a maior de todas as caridades, não é mesmo? Como se ter amor por um filho fosse caridade.
Mas na hora que adota, é você e você, não espere que todos vibrem na mesma atmosfera de amor que você está. E divido aqui com você: é uma atmosfera de amor maravilhosa, não sei explicar.
Respondendo minha própria pergunta do início deste texto, acho que é neste momento que nos tornamos pais – no dia a dia; talvez seu melhor amigo não seja cúmplice, não o apoie como você esperava. E não tem problema. O filho é seu e da sua companheira (no nosso caso, éramos um casal adotante). Que necessidade extremada é essa de ter o apoio da sociedade só pelo fato de que todos apoiam uma gravidez biológica? Quer ou não quer ser pai?
Sim: eu virei pai quando minha filha me foi entregue em meus braços na porta do berçário. Segurei minha filha. Meu bebê de olhos fechados agarrou de uma vez o dedão da minha mão assim que o encontrou. Me apresentei à minha filha falando com ela tomado por um amor que não sabia que existia. Parece brega, mas foi assim mesmo.
— Oi, minha filha...muito prazer, eu sou o seu pai. Comecei a chorar sem parar enquanto sorria e fui embora com ela para nosso lar. No caminho, quando eu estava no carro, meu compadre ligou e eu a descrevi para ele.
— É lindaaa...de olhinhos fechados ainda, um bebezinho de verdade, Paulinho! Sua afilhada!
Após mais de uma hora, nós dois chegamos em casa, Gabriela e eu. Nem percebi que ainda estava chorando sem parar. Meus olhos estavam daquele tamanho. A comemoração começou entre todos – mamãe, vovós, família.
Viver mais e pensar menos. Falei de paternidade até agora, de como e quando me tornei pai e como isso me provocou tantas angústias até que eu virasse pai. Perdi tempo. Talvez me questionar menos lá atrás e viver mais intensamente o momento de me tornar pai por adoção 20 anos atrás, sem data certa, tivesse tornado tudo mais leve. Foi como tinha que ser. O momento mais amoroso da minha vida até hoje: o dia que minha filha nasceu e veio para meus braços.
Adoção não é uma escolha nem um pouco ruim e também não define o pai adotante e sua filha adotada. Pelo contrário, adotar é uma delícia. É mais um jeito de um filho e um pai passarem a existir. Pena que pouca gente saiba disso.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 19 anos. Um pai branco de filha preta.
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