Antoune Nakkhle conta como é ser um pai branco com a filha preta
Antoune Nakkhle* Publicado em 17/10/2023, às 06h00
Hoje minha filha faz 19 anos. Parece que foi ontem que tocou o telefone e a moça me disse: seu Antoune, sua filha nasceu! Cheia de saúde. Quase 3 quilos. Era dia 17 de junho.
Olhei direto para o rosto dela e, mesmo com ela ainda de olhos fechados, impulsionado por um amor que nunca mais senti eu disse: oi, minha filha, eu sou o seu pai. Imediatamente sua mão agarrou o dedão esquerdo da minha mão. Seu jeito de segurar parecia carente como o meu. Me assustei. Virei pai para sempre.
Eu estava eufórico. Liguei para meio mundo. Gabriela tinha chegado. Alguns não entenderam, foi uma mistura de desânimo com gentileza: Ah, é? Legal, parabéns. E como ela é? Ela é bonita? Ela é pretinha? Felicidades.
Interessante notar a importância que a aparência física ocupa na vida das pessoas. Quase sempre é a primeira pergunta que fazem quando nasce um bebê. Normal. Será?
Mas eu comecei este texto contando que minha filha faz 19 anos; são também 19 anos de paternidade e de cumplicidade. Quase duas décadas do mais intenso aprendizado - a fala é lugar comum - mas gosto de dizer isso porque alguns pontos fogem da curva geral da dita felicidade ao me tornar pai.
Naturalmente, a cumplicidade entre duas pessoas se constrói com a convivência e com a gente não foi diferente. No ônibus cheio com ela no meu colo e eu de olho se ela fez cocô; correndo da chuva repentina na rua enquanto ela, presa no meu peito com o “canguru” dormia serena; brincando na calçada no caminho para a escola a pé cedinho; rindo de um conhecido que nos encontrava em alguma loja e perguntava se ela era minha filha – gargalhávamos da pergunta óbvia e na maioria das vezes ela ria da minha reação ao dizer, “Claro, ué?! Frequentemente eu saía com respostas espontâneas como essa e não me preocupava em explicar para Gabi o motivo dessas perguntas inadequadas para dizer o mínimo. A não ser que ela me perguntasse. E ela adorava fazer perguntas.
Sempre entendi que aprenderia a ser pai vivendo e que isso era igual para todos, independente de minha filha ser ou não biológica, branca ou preta. Nunca me passou pela cabeça que o racismo fosse me fazer um pai diferente dos que não passam por isso. Não pensei nisso. Sou um pai branco, de família branca, não sofri o racismo na minha infância.
Com o tempo, vivendo ao lado de Gabi, passei a experienciar como é sentir sua filha vivendo num mundo hostil aos pretos - especialmente às mulheres pretas. Nunca parei para pensar como isso ecoaria dentro de mim.
Hoje eu penso e observo essas questões dentro de mim. Onde está o racismo em mim? Em tantos lugares... Será que o incômodo que sinto existe porque percebo o racismo cravejado dentro de mim? A partir destas questões que lanço procuro me conhecer melhor e vejo que o racismo é mesmo estrutural. Ouço tantas afirmações que acho tão racistas e de repente me reconheço, mais jovem, dizendo as mesmas falas; lembro também de episódios que antigamente eu sequer me dava conta do quão racistas eram. Hoje imediatamente me manifesto: Isso é racismo. É inaceitável. Dói menos observar isso tudo quando minha filha sofre racismo? Não. Mas dá confiança de que tudo pode melhorar.
O que relato aqui sobre mim pode nos ajudar a admitir que, infelizmente, todos nós somos criados em uma sociedade discriminatória, racista, homofóbica, capacitista, gordofóbica, transfóbica – sempre liderada pelo machismo. Mas podemos nos reconstruir de dentro para fora. É nossa responsabilidade, dos brancos. Começar pelo prefixo anti é um ótimo caminho.
Minha filha é a minha cara!
Há semelhanças muito mais profundas e sutis nas relações, especialmente nas de pais e filhos. Gabi usa tranças, eu seria careca se não tivesse feito dois transplantes capilares. Ela dá seus primeiros passos profissionais como modelo; eu sou jornalista. Minha filha está fazendo formação profissional em teatro; eu fui ator profissional por 17 anos. Ela mede 1,60m; eu, 1,75m. Ela é afrodescendente, eu sou descendente de árabes e portugueses organicamente racistas. Eu não conheci meus avôs paternos; Gabi também não. Ela conheceu suas avós; eu não conheci nenhuma das minhas. Minha filha é magra e longilínea; eu aprendi que morrerei lutando contra meu metabolismo que é lento desde sempre. Ano passado ela conheceu sua mãe biológica. Eu conheci a minha desde meu primeiro respiro. Ela é filha única. Eu tenho uma irmã. Ela tem pais separados. Meu pai faleceu quando eu tinha 10 anos. Ela tem sobrancelhas grossas como as minhas - muitos observam isso, e comentam também que ela tem o jeitinho de olhar da mãe, minha ex-mulher. Isso realmente é muito importante, faz toda a diferença para a felicidade de uma família, não acha?
Realmente, Gabi e eu somos muito parecidos e isso nos une demais.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabi, de 19 anos. Mulher preta e adotada. Um pai branco de filha preta. paibrancofilhapreta@gmail.com
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