O colunista Antoune Nakkhle, pai da Gabi, nos conta os momentos emocionantes da sua paternidade por adoção. Ele conheceu a mãe biológica da filha
Antoune Nakkhle* Publicado em 29/10/2024, às 06h00
Eu sempre quis adotar um bebezinho. O fórum nos dizia que era muito difícil; destituir o pátrio poder da mãe biológica não é um processo rápido. Mas eu acreditava que teria um bebezinho.
Nas entrevistas mensais no fórum, assim que chegávamos na sala da assistente social e a cumprimentávamos, eu sempre mostrava a mão espalmada com os cinco dedos, indicando que nós conseguiríamos um bebê de, no máximo, cinco dias. Queríamos passar pelo processo todo desde o início – cuidar de um bebê, trocar fraldas, ver o cordão umbilical cair, acompanhar o desenvolvimento do nosso bebê dia a dia. Minha companheira era mais flexível, aceitava melhor a ideia de um bebê de seis, oito meses ou até de um ano de vida.
— Sem chance, Antoune. Eu preciso ser sincera e objetiva: pare de sonhar com o impossível. Já expliquei, o filho ou filha de vocês não terá menos do que seis meses. São cerca de 90 dias só para destituir o pátrio poder. E um bebê de meses não está disponível a todo momento. Pela nossa experiência, pode levar até quatro anos para chegar um bebê tão novinho assim, é o perfil que a maioria das pessoas procura.
— Tudo bem, Mônica. Mas vai dar certo.
Dentro da minha cabeça era assim: no máximo cinco dias.
Em janeiro de 2004 entramos na fila. Em um dia qualquer de abril, eu estava trabalhando na Bienal do Livro de São Paulo, quando toca o telefone.
— Oi, Antoune, tudo bem? É a Elaine Friedenreich, do jornal.
— Oi, tudo bem e com você?
— Tudo bem. Você ainda quer adotar um bebê?
— Quero, não. Nós vamos adotar, já estamos na fila do fórum há três meses.
— É o seguinte: eu fiquei sabendo de uma mulher grávida de cinco ou seis meses que vai dar o bebê quando ele nascer. Você tem interesse? Quer que eu pegue o contato da moça para você? Mas olha: eu não sei de nada, não sei como é essa mãe, idade, de onde vem. Só sei que ela trabalha na casa de uma mulher que é cliente de uma manicure num salão de beleza perto de São Paulo.
— Eu quero, Elaine. Quero muito!
— Vou pegar o telefone e passo para você.
Desliguei. Eu acabava de encontrar minha filha. Eu não sabia como seria, mas hoje eu sei que havia encontrado o meu bebê antes mesmo de falar com a mãe biológica. E com muito menos do que cinco dias de vida. Com cinco meses de gestação.
Agora era só ir atrás. E falar com o fórum para fazer tudo dentro da legalidade.
Eu dizia pra mim mesmo:
— Calma, Antoune, não viaja. Respira. Primeiro vá conhecer essa moça. Tente uma vez na sua vida fazer como sua mãe sempre diz: uma coisa por vez.
Eu não conhecia Mauá, apenas sabia que era uma cidade próxima da região do ABC, do lado de São Paulo. Mas minha amiga, Sílvia Polazzetto, que trabalhava comigo, morava lá desde que nasceu. Pedi para ela me levar ao endereço. Ela topou na hora. Não acreditei!
“Isso só pode ser um sinal! Ela vai junto comigo para me ajudar a encontrar o endereço!”
“Não viaja, Antoune, menos, ela só resolveu dar um apoio pra você.”
Não preciso falar da minha ansiedade até chegar o dia de irmos conhecer a moça, que se chamava Roberta e tinha uma filha pequena do primeiro casamento.
Quando cheguei na casa da Ana Claudia, melhor amiga da Roberta e também patroa dela, antes de sair do carro, a terra tremeu. “Antoune, chegou a hora. Segue seu coração, mas com os pés no chão”. Se achar que é loucura, que essa moça não é legal, desista e espere chegar sua vez na fila do fórum. Eu estava com medo de conhecer a realidade cruel da mãe biológica da minha filha. Dessa moça não ser uma pessoa do bem. Na verdade, estava com medo de tudo.
De repente, me passou pela cabeça: a Ana Claudia e Roberta foram vizinhas de porta desde pequenas. Estudaram juntas. Cresceram juntas. Tiraram nota vermelha pela primeira vez juntas. Ana Claudia era bem branca e loira natural. Roberta era preta do cabelo bem crespo, apertado mesmo. Uma era a patroa, a outra, a diarista. Estudaram na mesma escola. As mesmas dificuldades e oportunidades. Será?
Toquei a campainha. Estava quebrada. Batemos palma por duas vezes. Ana Claudia veio abrir o portão para nós. Roberta já nos esperava na porta da casa e nos cumprimentamos com um aperto de mãos. Duas crianças brincavam na sala. Sentamos frente a frente. Nos olhamos enquanto eu respirava fundo fazendo cara de tranquilo. Foi o tempo de levarem as crianças para dentro e disparei a perguntar tudo a respeito dela. Eu parecia um delegado interrogando uma pessoa. Doce e educado, é verdade. Mas questionador. Me achando “o jornalista investigativo” que podia perguntar e descobrir tudo nos mínimos detalhes.
Ela foi precisa nas respostas e nas suas colocações, inclusive ao explicar o motivo pelo qual queria entregar a criança que estava em seu ventre. Era decidida. Olhava seco no meu olho. Sabia o que queria. Às vezes se confundia nas conjugações verbais. Era educada. Me convenceu que dizia a verdade, gostei dela.
Até que ela virou o jogo:
— O senhor terminou? Quer perguntar mais alguma coisa?
— Não sei, acho que terminei, sim.
- Então agora é a minha vez de perguntar.
Gelei.
— Por que o senhor e sua mulher querem adotar uma criança? Não conseguem ter o bebê de vocês? Por que querem uma criança preta se vocês são brancos? Eu sou preta, o pai da criança é branco; ela (e) vai ser mais clara (o) do que eu, mas vai ser uma criança preta. Sua mulher é racista? Eu quero saber.
— Não, Roberta, imagine, de forma alguma, a mulher que trabalha na casa da minha mãe desde que eu nasci é preta, tenho amigos pretos, até namoradas pretas já tive. “Resposta mais racista do que essa era impossível, mas esse era eu, infelizmente.” E além do mais... (ela me interrompe de repente)
— Dá licença de interromper. Olha aqui, o senhor não me conhece. Eu sou pobre, tenho uma vida difícil, posso ter muitos defeitos, mas eu sou honesta. Eu não posso ficar com essa criança porque eu não quero que ela passe a necessidade que a minha filha pequena já vive todo dia. Se ficar comigo, vai morrer de fome. Não engravidei porque eu quis, foi um acidente. Mas tem uma coisa: eu quero dar essa criança para quem quiser muito e para quem me garanta que não vai tratar mal a criança só porque ela é preta nem fazer a(o) menina(o) de empregada(o). Eu quero que essa criança seja feliz, tenha uma vida boa e seja alguém nessa vida. Pelo menos mais feliz do que eu consegui ser e do que minha filha será. Por isso eu vou dar esta criança e não vou vender, quero deixar isso muito claro. Só isso. O senhor entendeu? Não quero que nem o senhor, nem sua mulher nem a família de vocês destratem essa criança.
Eu quis desaparecer. Queria que o chão se abrisse diante de mim. Olhei para minha amiga Silvia, que fingiu que não era com ela e olhou para o teto. Constrangimento total e silêncio. Percebi que ela amava demais essa criança e quase comecei a chorar. Gaguejei, até que consegui falar:
— Entendi, Roberta. Entendi. Deixa ver se eu consigo responder o que você me perguntou. Minha família está aprendendo dando muita cabeçada o absurdo que é o racismo. Quebramos a cara algumas vezes e estamos aprendendo. Fique tranquila. Se nós tivermos um bebê negro ele não sofrerá racismo na família. Pelo contrário, minha família defenderá com unhas e dentes esse bebê de qualquer racista que aparecer. Juro para você.
— Jura mesmo?
— Juro, Roberta.
— Tá certo, seu Antonio. Vou pensar. Converse com sua esposa e pensem também. Depois, ligue para a Ana Cláudia, tô sem celular.
— Tá certo. Mas quero pedir uma coisa: alimente-se melhor, você está muito magra e sua barriga tá muito pequena para quem está com seis meses. Cuide bem do meu bebê, hein? Tem certeza do tempo de gravidez?
Ela sorriu desconfiada.
— Acho que sim.
— Tchau, tudo de bom. Foi um prazer te conhecer, Roberta.
— Tudo de bom também.
Fui para casa com a cabeça girando. Fiquei impressionado com tudo o que ela disse e também pelo fato de estar muito magra. Como o trajeto de volta era longo, tive muito tempo para pensar sozinho até chegar em casa e encontrar minha esposa. Às vezes eu me perguntava se não estava brincando de protagonizar uma história de novela em vez de olhar de frente o que eu estava querendo fazer. Afinal, envolvia a vida de uma pessoa que sequer havia nascido e eu já queria que fosse minha filha. Me senti mal. Culpado por estar colaborando para uma pessoa fazer um ato tristíssimo, que é dar seu filho. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais a lei não permite que a gente conheça os pais biológicos.
A gente quis pagar o preço. Eu queria um bebezinho.
No próximo artigo, notícias sobre o pré-natal e o nascimento da minha filha.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, de 20 anos. Um pai branco de filha preta.
Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com
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