Adotou vai pro céu

Reflexões sobre a percepção social da adoção e seus impactos emocionais na vida de quem adotou

Antoune Nakkhle* Publicado em 14/07/2025, às 06h00

Antoune com sua filhinha Gabi - Foto: arquivo pessoal

Você adotou? Nossa, que lindo! Que coragem. Vocês vão para o céu.

Fico impressionado quando as pessoas ficam sabendo que sou pai por adoção e me olham como se eu fosse uma pessoa melhor do que as outras. Por que? Eu tenho certeza de que não sou. Às vezes, esse tipo de colocação me faz mal.

Dá a impressão de que adotar é algo tão menor, tão fora da curva, que parece até que estou me contentando com pouco e por isso sou uma pessoa legal. Algo como: não teve filho biológico, mas adotou uma criança. Perceba o “mas”. Muito parecido com falas como: “quebrou a perna, mas não precisou engessar, só imobilizou”. Ou: “ele viajou para a praia, mas não fez sol. Ah, mas ao menos não choveu, só ventou, deu para aproveitar as férias mesmo assim”. “Não ficou rico com a profissão que escolheu, mas vive com dignidade”. “Eu acho lindo esse ato, mas eu não faria. Se não for para ter filho meu mesmo, prefiro não ter”.

 

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“Mas o que é isso? Agora temos que achar que a adoção é o céu em flores? Que absurdo, não dá pradizer nem que isso é mimimi, porque é muito mais absurdo do que qualquer definição que possamos dar. Por favor, quem quer adotar que o faça, mas não venha me fazer acreditar que isto é uma maravilha porque não é. Filho que é filho vem da barriga, “puxa” a gente. O resto é arremedo. Até porque você sabe, no fundo, no fundo, todo mundo quer mesmo é ter um filho de verdade, com a sua cara, com as suas semelhanças e com os seus genes. Todos querem um filho que seja sangue do seu sangue. Além do mais, com certeza será uma criança pretinha”.

A mim chama a atenção o fato de que ser pai oumãe nunca esteja na frente de colocações como asque descrevi acima. Quem nunca ouviu um absurdo desses ser dito dentro de casa, no almoço de domingo ou numa festa de comemoração familiar?   Você nunca? Ninguém da sua família, nem mesmo um parente distante, disparou uma frase preconceituosa como essa da mulher que acredita que filho que é filho vem da barriga? Bem, se você nunca ouviu isso ao longo da sua vida, seja de um parente, amigo ou vizinho, então preciso te contar: você não é deste planeta. Porque aqui na Terra tem muito disso. Tem desses pensamentos ignorantes – e muitos por opção.

O outro extremo é aquele onde a pessoa te encontrano mercado depois de muito tempo sem te ver e lança a máxima:

“Fiquei muito feliz quando soube que vocês estão adotando. Fique tranquilo, Deus tá vendo e vai abrir seus caminhos cada vez mais para criar essa criança com prosperidade. É assim, a gente faz caridade e Deus responde em dobro com coisas boas. E o mais importante; vocês vão dar uma vida nova para essa criança. É uma sortuda. Tadinha dela.”

Parecia até que a pessoa falava tudo isso porque tinha certeza de que era enviada de Deus. Então, naturalmente, sentia-se à vontade para me abençoar pela boa ação de adotar um filho. Ela não entendeu nada.

Era assim mesmo que sempre falaram para mim. E o pior: eu nem notava o quão capciosas eram afirmações como esta.

Infelizmente, a adoção sempre vem acompanhada da “pergunta misteriosa”: será que vai dar certo?

A adoção é tida como algo tão grave e perigoso que quando uma pessoa ou um casal se decide por este tipo de parentalidade, para a sociedade isso soa como um ato heroico; é mais ou menos como se a pessoa que decide adotar uma criança ou adolescente estivesse arriscando sua própria vida ao resolver ter um filho por adoção. Esta pessoa está lançando as cartas para o alto rumo a um destino desconhecido. Um verdadeiro herói.

Quem se debruça sobre a história já documentada entende que a adoção no Brasil faz parte de um processo histórico que se construiu, aos poucos, ao longo dos séculos, a partir da prática do abandono infantil.

Poucos sabem, mas a adoção de crianças foi regulamentada no Brasil em 1916, com a publicação do Código Civil daquele ano. A partir desta data, a lei passou por várias modificações legais. As regras e os direitos dos adotados foram finalmente estabelecidos com a chegada do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990. Ou seja, é tudo muito recente e, por isso, é muito importante se informar sobre adoção no Brasil e no mundo antes de, simplesmente, julgar de forma preconceituosa. A entrega de um filho para adoção no Brasil, por exemplo, é algo reconhecido, desde que seja feito na forma da lei.

O nascimento

Quando nasce o filho de um casal é aquela festa, não é? Quando chega um filho por adoção também! Nos dois formatos, nascem uma mãe, um pai e umafilha ou filho. E uma nova família para todos eles. É muito emocionante. É como se alguém tocasse no interruptor, acendesse a luz e pronto: você virou pai. Sem os nove meses anteriores assistindo uma barriga crescer com o desenvolvimento do seu rebento. Sem ultrassom. Sem maternidade. A gente vira pai e mãe e junto, um amor que dá medo de tão intenso surge. Parece uma avalanche. Eu não conhecia amor igual a este. Ao lado de todo esse romance vem o lado B da história. O medo. Como será essa jornada? Será que ela vai me amar mesmo sabendo e vendo que não sou seu pai biológico? Será que eu vou amar uma criança que não se parece nada comigo? Todos esses questionamentos que sempre ouvi as pessoas falarem para mim agora pareciam um fantasma que crescia dentro do meu coração. Mas a vontade de ser pai era maior. Logo eu percebia que eu deveria afastar de mim esses pensamentos que não eram meus, mas que me foram ensinados. “Vou pagar pra ver, se eu cair, do chão eu não passo”.

Até que minha filha Gabriela abriu seus olhos pela primeira vez para mim após seu nascimento. Para tudo: era esse amor maluco que havia chegado.

Quando a adoção acontece todos fazem bem para todos. É uma entrega natural de amor mútuo. De repente, o filho que você sempre quis ter está no seu colo. Pronto. Nasceu um pai. Ninguém faz favor nem caridade para ninguém quando o assunto é adoção. É um encontro, uma parceria que nasce. Uma relação de pai e filha. No meu caso, um amor de pai branco por minha filha preta.

Não ganhei de Deus um pedaço do céu quando adotei minha filha. E nem pretendo. Errei bastante – acredito que como qualquer pai. Ganhei, sim, uma filha fantástica que acabou de completar 21 anos e está se tornando uma mulher preta para lá de legal, bom caráter e talentosa na profissão que escolheu.

O que mais importa?

 

*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, que acaba de completar 21 anos. Um pai branco de filha preta.

Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com

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