O colunista Antoune Nakkhle, pai de uma adolescente, conta como foi acompanhar a gestação biológica da filha que adotou
Antoune Nakkhle* Publicado em 18/11/2024, às 06h00
Nota do site: o texto a seguir contém uma história de emoção profunda.
No último artigo da coluna, contei a vocês que havia aparecido uma mulher que desejava fazer entrega direta de um bebê que ela estava gerando há quase seis meses. O nome dela era Roberta**.
Após Roberta resolver que daria o bebê para nós, decidimos ficar com a criança dela e correr todos os riscos que uma entrega direta representa.
Antes de definir se ficaríamos com o bebê, voltei a conversar pessoalmente com Roberta para ver se ela queria mesmo entregar a criança dela. Tentei tirar isso da cabeça dela. Mostrei a ela o outro lado. Eu não queria ser o responsável por ela entregar seu filho. Quando vi, eu estava conversando com ela como se fosse minha amiga. Ela estava decidida. Daria o bebê de qualquer jeito. Se não fosse para nós, ela entregaria para outra pessoa.
De repente eu me sentia vivendo em uma realidade paralela. Eu nunca havia visto na minha frente e por bastante tempo uma situação tão difícil no meu dia a dia. Para falar com a Roberta eu precisei passar a ligar no telefone público que ficava na frente da casa dela, pois ela estava sem celular. Eu ligava para saber como ela estava, se passava bem, o que ela havia comido no almoço, se ela estava precisando de algo, essas coisas. Por vezes eu ia até Mauá para levar alguns mantimentos, embora ela nunca pedisse e dissesse não ser necessário. Na verdade, a cada 15 dias eu combinava com ela e aparecia por lá no sábado.
Eu pensava: como está a cabeça de alguém que vive uma gravidez que não esperava, de alguém que ela não amava e que estava naquela dureza criando uma filha pequena do primeiro casamento?
Nessas visitas eu aproveitava e conversava com a criança que estava dentro da barriga dela. Às vezes ela chutava a barriga de acordo com as coisas que eu dizia. Eu fazia de tudo: me apresentava, contava que eu era o pai dela, falava da mãe dela mas, acima de tudo eu contava que sua mãe biológica a amava e a concebido para ser nossa filha e que nós já a amávamos. Coisa de pai coruja.
Eu entendia que ela talvez já estivesse acostumada com esta realidade, mas o que mexia comigo é que ela estava trabalhando como diarista ganhando muito menos do que pouco, cuidando da filha de quatro anos (que ela levava para o trabalho) e sem um companheiro com quem pudesse dividir este momento de decisão sobre o rumo desta gravidez e tudo o mais. Só a melhor amiga dela sabia da gestação e da sua intenção, ninguém mais. Nem a mãe, irmãos, pai, ninguém. Toda essa situação que ela estava vivendo me deixava bagunçado por dentro.
Do meu lado, eu não podia ficar falando sobre essa situação para muita gente também pois, como já disse, quando o assunto é adoção, as pessoas opinam como se fosse domínio público. E muitas vezes fazem observações que em nada ajudam. Na verdade, o assunto era apenas a maternidade e a paternidade com o acréscimo de ser por adoção. Isso ninguém percebia, ninguém se colocava no nosso lugar, como acontece quando um casal está esperando um filho biológico e não sabe se optará por cesárea ou parto normal.
Depois que decidimos que ficaríamos com o bebê dela, fui mais uma vez na casa de Roberta para tratar de questões práticas.
— Roberta, como está indo seu pré-natal?
— Que pré-natal, que nada, dessa vez não fiz nada e seja o que Deus quiser. Quando engravidei da minha primeira filha, fui no posto e quando chegou minha vez minha filha já tinha seis meses de vida. Agora não quero passar de novo por isso.
— Pelo amor de Deus, Roberta, é perigoso! Se eu conseguir uma clínica particular para você fazer todos os exames com acompanhamento nos próximos três ou quatro meses até você dar a luz, você aceita?
— Aceito.
Marquei todos os exames necessários. Ela concordou, a clínica, ficava na Vila Mariana, um bairro nobre de São Paulo. Foi aí que eu vi bem de perto o racismo em ação e a dor que a vítima sente.
Meu telefone tocou:
— Seu Antonio, oi, sou eu. Eu estou aqui na calçada porque a recepcionista não me deixou fazer os exames, nem me atendeu direito.
— Como Roberta?
— Eu até já tô acostumada, mas pensei que dessa vez, por ter sido o senhor que conseguiu esse lugar, seria diferente.
— Você disse que eu havia marcado os exames para você, do jeito que eu te expliquei?
— Sim, senhor, mas ela nem me deixou terminar de falar. É lugar de bacana, de gente chique que se acha mais do que a gente, só porque eu sou preta e tô com roupa de pobre em comparação com o pessoal que está lá dentro.
Era evidente a tristeza na voz dela. Uma tristeza pesada, com cara de repetição. Parecia um luto eterno. Parecia que a cada luto motivado pelo racismo ela morria um pouco.
— Antes de mais nada: perdão, Roberta, fiz tudo para que isso não acontecesse. Vou resolver isso agora. Me passa o número desse Orelhão do qual você tá me ligando. Eu te ligo em 5 minutos. Desculpe mais uma vez, estou muito chateado e com vergonha.
Senti muita raiva! Respirei fundo e liguei para a clínica, onde falei com a recepcionista, que pediu perdão, que disse que foi um mal entendido, que Roberta talvez não tivesse entendido direito o que ela falou. Não aguentei:
— Qual o seu nome?
— Cleide, senhor.
— Cleide, eu sou o cliente e desde que contratei os serviços de vocês me fiz entender. Certo? Então, Cleide, eu exijo que vocês se expressem direito, sem mal entendidos. Está certo assim? Você entendeu? Por gentileza, atenda gentilmente a Roberta (que vai retornar aí na clínica). E ofereça café e água para ela, assim como vocês oferecem para minha esposa sempre que vai aí. Já liguei para o doutor Walter e ele está ciente (o Walter era o médico dono da clínica, com quem acertei o pacote de exames e acompanhamento do pré-natal). Posso ficar tranquilo, Cleide?
Nesta situação com a Cleide, fui o melhor que pude.
— Alô, Roberta?
— Oi, seu Antonio.
— Por favor, pode voltar lá. Você será bem atendida. Garanto. Na hora de ir embora, antes de sair, fale para a Cleide, a moça que a recebeu mal da primeira vez, que eu pedi para ela ligar para mim porque quero falar com você antes de você partir.
— Tá certo...
Respondeu, desconfiada e segurando o riso...
A humilhada e agredida, vítima do racismo velado, foi Roberta. Mas eu fiquei arrasado. Doeu demais ouvir Roberta me contar, falar o que tinha passado. Saí pensando quanto dessa situação se repetiria com meu/minha filha(o) ao longo da vida e como seria para mim conviver com esse racismo e preconceito em cima da minha filha. Seria um sofrimento para toda a família ver nossa filha passar por isso frequentemente. Eu já sabia que o racismo demoraria demais para diminuir no mundo. Nunca acreditei que acabaria. Só não sabia, nem de longe, qual seria o tamanho desse sofrimento.
Hoje eu sei o que é ver seu filho sofrer racismo: é uma dor inexplicável; é sempre um susto inesperado, daqueles que a gente não se acostuma, somos pegos de surpresa e muitas vezes não conseguimos sequer reagir. Mas quando consigo, sai da frente que eu estou de trator.
Na sequência eu penso: essa gente racista criminosa que se dane! Se fizerem isso com nossa filha, iremos para cima, não a deixaremos ser esmagada pela ignorância, vamos ajudá-la no que for possível. Reagir ao racismo também é o lado bom da vida. Ver criminosos serem presos ao praticarem crime de racismo é justo e conforta. Percebi, aos poucos, que era bobagem alimentar essa dor – e que saberia orientar minha filha se fosse preciso. Amor para isso nunca faltou.
O pré-natal dela foi curto, quando ela fez os primeiros exames de imagem e de sangue, já estava, com mais de seis meses de gestão. Um mês depois, o médico repetiu os exames. Roberta e o bebê estavam bem.
Eram 08h30 e eu já estava quase saindo para trabalhar, quando, recebi uma ligação a cobrar no celular.
— Seu Antonio! Nasceu! Parabéns! É uma menina!
Era a melhor amiga da Roberta.
Comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo, estava sozinho em casa.
— Posso ir aí?
— Só quando ela tiver alta. Amanhã às 09 horas.
— Até amanhã então!
Não preciso dizer que fui trabalhar, mas mal trabalhei e que à noite me deitei, mas não consegui dormir. Queríamos ver o rostinho da nossa filha.
Quando se fala em adoção, entrega direta é quando alguém dá seu filho para um casal registrar em seu nome. Muita gente registra a criança entregue como se fosse filho biológico, o que caracteriza crime pela legislação brasileira. Não foi nosso caso, pois queríamos adotar uma criança legalmente.
Como estávamos cadastrados no Fórum e na fila aguardando, falamos com a assistente social do Fórum porque queríamos fazer a adoção legal, mas com o filho da Roberta. Estávamos ansiosos porque queríamos saber se, quando a Roberta entregasse o bebê, se este iria para o primeiro da fila ou para nós?
Foi bem complicado porque como isso a lei não prevê, as coisas não funcionam assim. Muitas idas e vindas e muita ansiedade para saber se daria certo. Depois de muita conversa com o Fórum, deu tudo certo. Assim que Roberta deu luz à nossa filha, no mesmo dia, em depoimento para o juiz e para a promotora, ela afirmou que não queria a o bebê. Disse que queria dar para mim, para nós. Falou coisas lindas a meu respeito, me contou depois o escrivão do fórum. Eles fizeram de tudo para demovê-la da ideia de dar o bebê, mas ela estava decidida e reafirmou que desejava entregar para mim.
Fiquei muito feliz e vi que ela também estava aliviada, ainda mais vendo a felicidade nos meus olhos. Nesse dia, nos despedimos.
— Bem, Roberta, como eu havia lhe dito quando decidi adotar minha filha bebê, provavelmente, depois de hoje, não nos veremos nunca mais.
— Tá certo, seu Antonio, muito obrigada por tudo. Cuide bem dela.
— Pode deixar, Roberta. Mas me responda uma coisa antes de cada um ir para o seu lado: quer voltar atrás? Quer mudar de ideia? Se você quiser ficar com ela, eu vou entender. Afinal, foi você quem a gerou, não é mesmo?
— Essa criança veio por mim, mas não para mim. Ela veio para o senhor e para sua esposa. Eu vejo o amor que o senhor tem por dentro pelo seu olhar. Você olha as pessoas com amor. Ninguém até hoje foi tão meu amigo como o senhor. Porque o senhor cumpriu tudo o que combinamos.
— Meu Deus, muito obrigado por suas palavras, Roberta. Desejo tudo do melhor para você daqui em diante, quero que seja muito feliz, saiba disso.
— Eu também desejo felicidade para o senhor. Agora vocês são uma família. Uma família feliz, se Deus quiser.
— Se Deus quiser, Roberta. Seremos, sim. Até um dia se for para ser.
Nos abraçamos com muito afeto, embora sem intimidade alguma. De repente, estávamos nos separando de um período sem tempo e talvez para sempre.
Os quatro meses de convivência com ela foram preciosos na minha vida. Me modificaram para sempre.
*Antoune Nakkhle é jornalista, assessor de comunicação e imagem e pai da Gabriela, de 20 anos. Um pai branco de filha preta.
**Roberta - nome fictício da mãe biológica
Se quiser falar com o autor: paibrancofilhapreta@gmail.com
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