“Tudo bem! Ele é autista!”

O professor Luciano de Jesus Gonçalves descobriu, já adulto, que é autista

Luciano de Jesus Gonçalves* Publicado em 02/04/2024, às 06h00

Luciano de Jesus Gonçalves tem autismo -

Uma visita de cortesia a uma prima me colocou diante de situação curiosa, um almoço com dois desconhecidos, casal de amigos dela. Por vezes, o papo descontraído era interrompido pela senhora que, diante de uma manifestação do marido, reprovava-o e, em cumplicidade comigo, logo eu, soltava a frase: “tudo bem! Ele é autista!”

Entre a primeira e, talvez, a quinta, sexta reprimenda conjugal, comecei a traçar na mente uma estratégia para acompanhar o assunto mais de perto, de modo mais empático. A confusão inicial foi tomada pela certeza de que eu estava, sim, diante de um autista.

Intimamente, a “certeza” tornou o clima de confraternização mais sério. Não demorou até que a deixa fosse dada, novamente. Como numa peça de teatro, ouvi outro esculacho seguido da palavra-refrão: AUTISTA!

Em um lapso breve, controlando o ímpeto, pensei na minha participação nesse diálogo. Em instantes, diria para a esposa provocativa, cruel, carinhosa, sádica e, sempre, risonha, “que estava tudo bem, que conseguiriam conviver em harmonia, que o TEA” – óbvio, eu usaria a sigla para demonstrar intimidade, conhecimento e complacência, fabulei – “que o TEA, Transtorno do Espectro Autista, não traria prejuízos se acompanhado de perto por profissionais bem-preparados, que o nível de suporte dele” – arremataria com mais essa clara demonstração de atualidade, pensei –, “que o nível de suporte dele parecia baixo e a vida do casal seria incrível”.

 

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Nesses segundos de diálogo comigo mesmo, caso surgisse alguma abertura, entre uma garfada e outra, confessaria que, naquele momento, eu mesmo estava passando por uma avaliação neuropsicológica, decidi. Com calma, justificaria que “a crise dos quarenta, problemas corriqueiros no trabalho, algumas questões pessoais e certa preocupação com a política nacional me colocaram diante de dois divãs, vários testes e múltiplos nomes, até então, pouco ou nada conhecidos. Hoje – reforçaria buscando solidariedade – a pergunta que mais me aflige é ´eu sou autista? `”. Nesses dois últimos parágrafos, o fluxo das frases tenta acompanhar esse movimento caudaloso que, quase sempre, está presente no funcionamento do meu cérebro.

Mesmo acanhado, não consegui me controlar. Perguntei à esposa se o marido era, de fato, autista. A resposta veio rápida, objetiva, sonora: “não! Ele não é autista! É que eu só brinco com ele assim. Estamos juntos há vinte e tantos anos”, calculou um número, orgulhosa.

Surpreso, incrédulo, confuso, soltei um “ah, sim”, entre risos amarelados e a conversa seguiu normalmente. Escutei um pouco aquele senhor, negro retinto, 61 anos não aparentados – apesar da barba e dos cabelos brancos -, que me falava sobre o seu trabalho, o esforço para abrir e manter uma empresa, os clientes, a postura nos negócios, pautada na honestidade, afinal de contas, “vivia num país extremamente racista e, por isso, era preciso ser honesto”. Somando esse alerta racial pungente, o papo foi interessantíssimo, mais saboroso que a sobremesa que eu tinha feito, um doce de banana a ser servido com sorvete de creme.

Depois desse episódio, a vida seguiu e, com ela, a minha reaproximação com a Psicologia aumentou. Convivendo com esses profissionais na família e no círculo de amizades, recentemente, eu me dei conta de que havia décadas que não frequentava um consultório para tratar questões psicológicas.

Agora, de posse do diagnóstico completo – diagnóstico este investigado e obtido em mais de um ano de consultas, noites sem dormir, medicamentos, lágrimas, medos, testes, dúvidas e avaliações, essa cena do almoço me veio à mente. Um incômodo recente também se intensificou. Diariamente, pessoas autistas e/ou com outros transtornos neuro divergentes são bombardeadas por frases, memes e piadas que relativizam suas condições. Nesses contextos, “autista” pode ser aquele que não está na vibe da galera, por exemplo.

Para além da crônica sobre a hospitalidade, esse relato poderia ter como subtítulo “Carta aberta e declaração de amor à Psicologia”. Com um pouco de frio na barriga e uma leve insegurança sobre os sentidos e alcances desse espectro – palavra que pode significar ainda algo fantasmagórico, uma ameaça de perigo, uma evocação insistente, alguém esquálido e esquelético, um sinônimo de vazio ou dada função da Física –, daqui para frente, meus desafios serão enfrentados com mais acompanhamento especializado e segurança. Como consequência desse processo de busca pela minha saúde mental, os efeitos positivos virão com menos autocobrança e sofrimento. A formação, o devido registro no conselho de classe, o trabalho, a experiência e o trato humanizado de duas Profissionais Psicólogas, às quais eu dedico esse texto, deram um pontapé inicial e me ajudaram a descobrir que, além de muitas outras coisas, sim, eu sou autista e está tudo bem.

*Luciano de Jesus Gonçalves, Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), é professor no Instituto Federal do Tocantins (IFTO). Obteve o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) associado ao Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH, desatento), aos trinta e nove anos.

 

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