A história inspiradora de Bia Kern, uma mulher em construção na construção
Bia Kern* Publicado em 30/06/2024, às 06h00
Um questionamento sempre esteve presente em toda a minha trajetória: por que não? Por que acham que não podemos, que não devemos ou que não conseguimos? Um dos grandes legados da minha mãe, dona Diva, foi ensinar que deveríamos ir à luta, colocar a mão na massa.
Só que a massa que tradicionalmente acham que nós, mulheres, estamos aptas a colocar é só a de pães, bolos ou macarrão. Claro que não deixei de colocar as mãos nessas massas também, afinal, sou mãe de duas meninas (hoje mulheres já, a Betina e a Bruna). Porém, a massa que estou falando é a que constrói, ergue e sustenta casas: o cimento.
Fui criada em um ambiente em que precisamos fazer nossos consertos de casa. Depois da separação, minha mãe criou sozinha 7 filhos. Não dava para esperar ter dinheiro para consertar ou arrumar algo. “A gente mesmo tem que resolver”, dizia ela. Nossa vida não foi fácil, mas éramos unidos.
Cresci com a gana por fazer. Fui vivendo e tentando. Trabalhei com moda e eventos. Depois, fui para o serviço público. Confesso que não estava bom para mim.
Sabia das minhas habilidades e tinha a lição e o exemplo de que precisava estar preparada, empoderada, e capaz de desenvolver minhas habilidades. Aqui faço uma analogia do que permeia minha história. Resolver nossos próprios problemas e bloqueios pode ser comparado ao processo de fabricação do cimento na construção civil.
Ele começa extraindo as matérias-primas como calcário e argila. Analogamente, resolver nossas questões pessoais começa com a identificação e entendimento das matérias-primas internas: nossos sentimentos, pensamentos e recursos.
Para o cimento, as matérias-primas são misturadas e moídas para formar uma mistura homogênea. Da mesma forma, precisamos combinar e processar nossas habilidades, experiências e conhecimento. Tudo para criar uma base sólida para a solução dos nossos problemas
Essa mistura a gente então aquece em um forno a alta temperatura. Isso se transforma no chamado clínquer. Esse processo de transformação pode ser comparado ao enfrentamento de desafios e adversidades que nos forjam e nos fortalecem.
O clínquer é moído com gesso para formar o cimento. Nossas experiências e aprendizados são refinados e ajustados para se tornarem soluções viáveis para os nossos problemas.
O cimento é usado como um dos principais componentes do concreto, essencial para a construção de estruturas robustas e duráveis. Em nossa vida, as soluções que encontramos e desenvolvemos se tornam os blocos de construção de uma vida mais resiliente e alinhada ao nosso propósito.
Assim como o cimento passa por um processo de transformação complexo e rigoroso para se tornar um material essencial na constrição civil, resolver nossos próprios problemas envolve autoconhecimento, resiliência e um processo constante de aprendizado e adaptação.
E minha história precisava ter sentido. Em 2006, coloquei meu projeto debaixo do braço e fui atrás de um parceiro. Era uma loja de material para construção. A proposta era oferecer 25 vagas para mulheres fazerem os cursos. Para minha surpresa, mais de 300 mulheres se inscreveram. Aí eu tive certeza de que tinha algo importante a ser feito ali.
Não consigo contar aqui, com exatidão, quantos nãos eu ouvi. Minha ideia foi considerada louca, uma bobagem e até totalmente fora do normal. Mas minha intuição me dizia que eu deveria seguir meu caminho. Dentro de mim, eu entendi que o que sentia poderia ser compartilhado por outras mulheres. Não tem quem nos diga não.
Eu queria ajudar mulheres a se sentirem independentes, terem autonomia, fazerem dinheiro. E mais ainda, que a forma de conseguir isso fosse em algo que muita gente acha que pode não ser lugar de mulher. Após todos esses anos, provamos que a construção civil é mais do que o lugar de uma mulher, é lugar de todas nós. É lugar para ser, crescer e nunca deixar de existir.
Meu projeto já tem 18 anos. O Mulher em Construção já formou mais de 6,5 mil mulheres. Tenho certeza de que não adianta falar de empoderamento se não falarmos de conhecimento.
No Mulher em Construção somos a voz para as mulheres de que elas podem fazer o que elas quiserem. podemos ir atrás e fazer o que desejarmos, quantas aspirações já conseguimos ultrapassar.
Sinto que é uma missão, é uma obrigação nossa levar adiante uma ideia que faça a mudança na vida das pessoas. E o que muitas mulheres mais precisam é de uma ajuda, de uma luz, de uma mão, de uma nova opção. Nossas alunas vêm de uma situação de vulnerabilidade, de violência doméstica. E as vidas são mudadas.
No próximo mês, no dia 29 julho, vamos reunir mulheres (e aqui também homens) na operação do Renegera RS. É nosso projeto no Rio Grande do Sul para reconstruir vidas e casas. Vão ser pelo menos 480 alunos que farão oficinas e treinamentos gratuitos no nosso primeiro Centro de Capacitação Emergencial, em parceria com a Universidade Lasalle, em Canoas (RS). Vamos oferecer aulas teórico-práticas, aulas financeiras (em parceria com a Natália Arcuri), trilha do desenvolvimento, suporte técnico, desenvolvimento profissional, bolsa auxílio, transporte e alimentação.
Queremos capacitar mulheres e homens para que possam recuperar seus lares, resgatar a dignidade, segurança e esperança após terem as casas atingidas pelas enchentes no estado.
Também temos nossos projetos em São Paulo, como o Cimento e Batom. Sei que não podemos e não vamos parar. É tudo urgente. Podemos ajudar muitas mulheres a mudar suas histórias e construir um novo amanhã. Elas não precisam ser reduzidas às situações de vulnerabilidade e violência que vivem, mas precisam de uma mão que as puxe.
Somos sempre metade do nosso problema e nossa outra metade é a solução que nós mesmas podemos encontrar. Precisamos seguir e puxar outras mulheres. Todas temos a chance de construir ou reconstruir quem somos.
*Bia Kern trabalha na construção civil
PL 1904: vamos responder à violência com inteligência
Mulheres sobrecarregadas: especialista explica importância da divisão de tarefas e cuidados com a saúde mental
Para marcar posição em uma sociedade machista, mulheres assumem mais responsabilidades no trabalho
Mulheres empreendedoras transformam dores em negócios bem sucedidos
Mês das Mães: qual o impacto do desequilíbrio entre maternidade e vida profissional para as mulheres?