Conheça a jornada de um relacionamento abusivo para a liberdade - Uma História real de resiliência e superação de Ana Carla de Amorim
Ana Clara de Amorim* Publicado em 12/07/2024, às 06h00
O ano era 2002. Um dia muito especial: dia do meu casamento. Mas o nervosismo tomou conta do meu corpo além do normal. Ao entrar na igreja já em direção ao altar, embora eu tentasse sorrir, os espasmos na face eram visíveis (essa informação é importante). Eu tremia tanto, que mal conseguia caminhar, como se algo tentasse me impedir de seguir em frente.
Hoje tenho consciência e acredito que os sinais que indicavam que eu estava em um relacionamento abusivo surgiram antes mesmo do casamento, por exemplo, quando eu não convidei para a cerimônia amigos bem próximos, porque ele achou melhor não chamar. Até hoje eu não entendo como eu fui capaz de aceitar isso. Logo nos primeiros dias de casada, os comentários sobre a minha aparência, as roupas que eu vestia, enfim, tudo o que antes não “incomodava”, passou a ser motivo de discussão. No final, eu acabava me sentindo culpada e só faltava pedir desculpas e agradecer a ele por isso.
As “chamadas de atenção” que ele me dava para o “meu bem” tornaram-se públicas e o constrangimento tomava conta de todos aqueles que presenciavam a cena, menos dele, claro. Até que um dia, uma amiga em comum (mais dele do que minha), enquanto eu a acompanhava até o portão da minha casa, ela fez um comentário sobre casamento e eu respondi: O que eu posso fazer? Já ouviu aquela história casou, agora aguenta?”. Para a minha surpresa, ela me disse: “Nem sempre. Nem sempre”.
Dias e meses se passaram e eu resolvi fazer faculdade. Ele já era formado e um dia mostrei a ele uma “carta de apresentação” que eu entregaria para uma universidade com o objetivo de ingressar em um curso técnico. Qual foi a sua resposta? “É com essa escrita que você quer entrar em uma faculdade?” Após essa total reprovação, procurei uma amiga que prontamente me ajudou. Enquanto escrevo, os meus olhos ficam cheios de lágrima ao relembrar essa história. Comecei a faculdade e passados dois anos eu pedi a separação e terminei o curso.
Depois de muitas conversas com amigos, comecei a fazer terapia e logo no primeiro dia, ao relatar como era a convivência familiar, a psicóloga perguntou o nome dele e eu falei. Conversamos por mais ou menos uma hora, foi quando eu percebi: embora eu estivesse nervosa em me expor, todas as vezes em que eu falava o nome dele, o meu corpo tremia e os espasmos no rosto eram visíveis. A psicóloga me disse que se eu não tivesse terminado esse relacionamento, eu teria enlouquecido.
No ano de 2012 comecei outra faculdade: Pedagogia e em seguida Mestrado em Educação. Nesse período, participei de grupos de pesquisa, apresentei trabalhos em congressos e eventos científicos na área da educação e conheci vários lugares.
Em 2020, após um intervalo de 14 anos desde a separação, tomei coragem e dei entrada no divórcio, sem entender ao certo o que um simples papel com um status de divorciada poderia trazer para a minha vida. Por que resgatar uma história que tanto me fez mal, de mexer no que estava quieto, acomodado, adormecido e abrir as feridas mal curadas e reviver fatos e lembranças que eu tentava esquecer? Qual o sentido de tudo isso? Essas eram as perguntas recorrentes ao tocar no assunto. Porém, o que mais me assustava e eu temia, não era dar entrada no processo, mas imaginar a possibilidade do encontro em uma audiência ou algo nesse sentido. Por sorte, eu não precisei comparecer a nenhuma audiência e o divórcio foi oficializado em 2021, ano em que eu participei de uma antologia poética.
No ano passado, quando eu voltava do almoço para o trabalho, ele passou por mim e novamente os tremores tomaram conta do meu corpo. Não paralisei, mas fiquei “fora do ar”, eu só queria sair dali e fui atravessando a rua sem olhar para os lados. Uma colega de trabalho que me acompanhava, sem saber o que aconteceu e vendo que um carro se aproximava, me puxou para trás e impediu que o pior acontecesse. E hoje estou aqui para contar essa história.
Eu ainda não descobri qual o “gatilho” para esses tremores, essas reações no meu corpo. Preciso descobrir até por uma questão de proteção e segurança, mesmo porque eu já o encontrei outras vezes e não senti nada. Um dia de cada vez.
Estamos em 2024, ano em que eu publiquei o meu primeiro livro de poesias. Sim, com aquela escrita e com esta que acompanha a minha trajetória, eu concluí o Ensino Superior e escrevi um livro.
A violência psicológica é apenas uma das muitas formas de violência doméstica. Em tempos onde mulheres continuam sendo vítimas e perdendo a vida, ter amigos, uma rede de apoio, sair de um relacionamento abusivo e estar aqui para contar esta história é o que me faz seguir e acreditar em dias melhores para todas nós.
*Ana Carla de Amorim é graduada em Pedagogia e tem mestrado em educação pela Universidade Católica Dom Bosco. Escritora.
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