O namorado do papai ronca é um livro de Plínio Camillo, que aqui nos traz um pedaço desta história
Plínio Camillo* Publicado em 27/02/2024, às 13h00
Sinopse: Um thriller em linguagem de roteiro que acompanha seis meses bastante especiais na vida de um adolescente também muito especial no período em que ele sai da grande metrópole para morar uns tempos com o pai numa pequena cidade do interior, enquanto a mãe vai para a Itália com projetos de estudos e trabalho.
Treina. Treina. Treina e treina. Canelas roxas e sorriso nos lábios. Os meninos marcam de se encontrar às duas e meia na frente da casa de Paulo.
Toma banho muito rápido. Não lava as orelhas. Dante almoça correndo. Não come o espinafre. Coloca um tênis muito velho e o pai o obriga a por outro, o azul.
13:45hs. - Dante está ansioso na frente da casa do Paulo. Paulo nem tinha tomado banho.
13:46hs - Ninguém chegou e Paulo não tomou banho. O pai de Paulo grita com ele. A mãe de Paulo grita com ele também.
13:54hs - Ninguém chegou e Paulo não tomou banho. O pai de Paulo xinga o Paulo. A mãe de Paulo xinga o menino também.
14:02hs - Ninguém chegou e Paulo foi tomar banho. O pai de Paulo continua a gritar com o Paulo. A mãe do Paulo não.
14:06hs - Ninguém chegou e Paulo está tomando banho
14:13hs - Ninguém chegou e Paulo já saiu do banho. O pai do Paulo continua a gritar com ele. A mãe do Paulo sai para ir ao supermercado.
— Quer entrar?
— Fico bem aqui, obrigado ...
— Que menino educado! O Paulo devia ser assim ...
14:24hs - Ninguém chegou e Paulo troca a camisa verde pela vermelha.
14:25hs - Ninguém chegou e Paulo troca a camisa vermelha pela rosa.
14:26hs - Ninguém chegou e Paulo troca a camisa rosa pela amarela.
14:27hs - Ninguém chegou e Paulo troca a calça preta pela azul. O pai do Paulo está assistindo televisão e tomando cerveja.
14:28hs - Ninguém chegou.
14:29hs - A molecada chega e entra na casa do Paulo sem bater.
14:30hs - O pai do Paulo pede, gritando, que tragam mais cerveja e fechem direito à porta da geladeira.
14:38hs - Saem e Dante vai atrás.
Ficam na frente do Tênis. Tiram sarro de todos que entram.
— Olhe aquela ali: está com todas as cores!
— Aquele ali foi a “mamãe que arrumou”.
— Aquela ali é “emo”.
— Aquele ali é um “vara pau”!
Entram e ficam ao lado do DJ.
— Essa música é muito ruim!
— O quê?
— Aquela parece o “Friagem” do Ben 10.
— O quê?
— Aquele parece a “Gosma”.
— O quê?
— Aquela está mais feia que o “Macaco-aranha”.
— O quê?
— Olha quem vem vindo: a gorda!
— O quê?
Priscila vem em direção de Dante. Nem dá atenção aos olhares dos moleques.
— Você me deixou esperando.
Dante não sabe o que dizer. Olha para os moleques que riem.
— A gente não combinou nada.
— Combinou sim. Eu convidei você e pensei que viríamos juntos.
— Não combinou.
— Combinou.
— Não combinou.
Priscila vai embora.
— Você deu bolo na gorda.
— Dei não.
— Namorado da gorda.
— Sou não.
— É sim!
— Sou não ...
— Já beijou a boca gorda da gorda?
— Beijei não.
— Quer beijar?
— Não!
— Cara, deixe o baixinho em paz ... Olha, aquele ali parece o “Enormossauro”.
— O quê?
A molecada foi expulsa do salão. Fizeram brincadeiras indecentes: passaram a mão nas meninas, puxarem as cuecas dos pequenos e roubaram refrigerantes.
Alguém deu uma ideia.
— Vamos dar um “salve” no baixinho.
Todos concordaram, inclusive Paulo. Dante tentou correr, mas pegaram. Tapas na cabeça e o deixaram de cueca! Levaram as roupas para fora. Foi uma puta falta de sacanagem! Dante corre para o banheiro, porém devido ao pânico, primeiro entra no banheiro feminino e depois, sob uma gritaria infernal, entra no masculino.
Dante só sai quando um segurança volta com as suas roupas todas sujas de lama.
— Como foi?
— Legal
— O que aconteceu com você?
— Choveu e cai.
— Mas não choveu.
— Caí em uma poça de chuva sem chuva ...
— Encontrou a Priscila lá? Ela estava procurando por você.
— Encontrei sim ...
— Dançou bastante?
Feriado prolongado. Vão para uma fazenda de um amigo de Ademar. Elenco: Heitor, Ademar, Priscila e Dante.
Andam a cavalo. Tomam banho de cachoeira. Caminham por muitas trilhas. Priscila conduz a charrete com maestria, Ademar cozinha bem, Heitor é fera na mímica e Dante pega as mangas nos galhos mais altos.
Ademar prepara o jantar, Priscila brinca com os filhos do caseiro.
Heitor faz uma longa caminhada pela fazenda. Dante o acompanha.
— Você é gay, pai?
— Como?
— Quero saber se você é gay?
— O que é ser gay, filho?
— Pai! Estou perguntando e não quero responder!
— Filho, sou um homem que adora o filho que tem e que ama outro homem.
— Mas então, é gay!
— Não sei. Sou alguém que gosta do que é.
— Não é gay?
— Filho!
— É, ou não é?
— Sem entender o que você quer dizer não sei responder.
— Então tá: gay é aquele que anda rebolando, fala fino e faz coisas como se fosse uma mulher.
— Então eu não sou.
— E que também transa com homem.
— Então eu sou.
— Mas você transou com a minha mãe?
— Sim, querendo, gostando dela.
— É ou não é?
— Imagine se é difícil entender, muito mais é viver. Gostei, amei muito a sua mãe. Ficamos juntos muito tempo. Ficamos juntos querendo ficar. Um dia deixamos de gostar de ficar juntos.
— Eu sei, sempre dizem isto.
— Então, depois comecei a me perceber. Ouvir a mim mesmo. Nunca quis ser uma mulher ou outra coisa diferente do que sou. Nem sempre tendo focinho de porco, pé de porco, orelha de porco é porco.
— Então o que é?
— Pode ser uma feijoada.
— Então você saiu do armário?
— Nunca estive em um, sou um professor e nem por isto me sinto menor ou menos importante do que um médico. Sou um homem que ama outro homem e não me sinto menor e nem pior que outro homem qualquer.
— Sei.
— Com todas as dificuldades, com as certezas, estou muito mais feliz, tranquilo. Sei que sua avó não quer falar comigo. Sei que me olham torto, imagino o quanto é difícil para você.
— Mas pai, antes nunca foi! Agora é estranho, meio complicado.
— Imagino.
— Para mim é um problema seu e não meu.
— Para mim não é mais um problema, mas é para você.
— Um pouco.
— Não procure rótulos, gavetas ou encaixes; por sorte, ou azar, somos todos diferentes, com diferentes olhares, diferentes formas de ver, sorrir e andar. E, principalmente, nem sempre o que é diferente da gente é ruim.
— Difícil!
— Sim, é.
Priscila acorda no meio da noite assustada.
— O que é isto?
— Seu tio roncando!
— Mas não parece o ronco dele.
— É o ronco do seu tio, quase todos os dias ouço isto ...
— Sei lá ... pode ser, mas não parece.
Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.
Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento
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