Estante preta: prosa preta das pretas

Após o escurecimento nas passarelas com Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, conheça mais escritoras negras que contam nossas pretas histórias

Plínio Camillo* Publicado em 05/03/2024, às 16h00

Capa do livro Um defeito de cor -

Seleção feita pelo escritor e colunista Plínio Camillo, que publica às terças-feiras aqui no site Mariana Kotscho a coluna Notas de Escurecimento. Veja que dicas preciosas de leitura abaixo.

Água Funda, Ruth Guimarães

Editora 34

 

Lançado em 1946, mesmo ano de Sagarana, de Guimarães Rosa, projetou no cenário literário a jovem negra escritora preta paulista, nascida na pequena Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba.

Foi nesse ambiente rural que ela situou uma história recheada de mistérios, escrito em um léxico muito particular, com o sotaque do afro-caipira do interior de do Estado de São Paulo, transbordando a lendas, causos e a uma oralidade cadenciada, lenta por vezes, ligeira quando a situação pede, inserindo o leitor em rodas de conversa em torno da fogueira, transpondo em palavras os sons da natureza, dos animais domésticos, da boiada, do tropel de cavalos, a passarinhada do fim da tarde, o murmurar das águas do rio, o farfalhar das folhas de árvores, o vento, a chuva, a vida rural, enfim.

 

Caixa Preta, Cristiane Sobral 

Edições Me Parió Revolução. Caixa Preta tem 16 contos curtos com um lirismo sarcástico que ora nos faz rir ora nos faz derramar lágrimas de emoção. A obra apresenta uma incursão por histórias de força incomum, protagonizadas em sua maioria por vozes femininas negras.

No decorrer da leitura, nos tornamos íntimos das personagens e nos comovemos com suas trajetórias particulares em caminhos que inspiram ao apresentar a coragem, o afeto e a determinação como elementos estratégicos para ultrapassar injustiças. A literatura afro-feminina tem sido campo literário plural produzido por autoras como Cristiane Sobral. Ela renova o meio literário contemporâneo quando propõe ressignificar corpos estigmatizados canônica e historicamente. Esta obra confirma porque Sobral é um dos mais importantes nomes da literatura afro-brasileira da atualidade.

 

Chica da Silva, Joice Ribeiro

Editora – Geração Editorial

 

Segundo Lorena Barbosa, a narrativa tem como perspectiva desmistificar a imagem histórica que foi construída sobre Chica, uma escrava alforriada que se tornou a primeira dama-negra da nossa história, apresentando aos leitores uma faceta que poucas pessoas são capazes de imaginar na vida de mulheres negras: a do amor e da afetividade.

A autora do livro, conhecida também por ser ativa na luta por direitos dos negros e das mulheres, constrói uma narrativa que perpassa desde o nascimento de Chica, na senzala do Arraial do Milho Verde, até a sua morte como cidadã livre no Arraial do Tejuco.

A obra, narrada terceira pessoa, recupera o viés romântico que humaniza a personagem. Ao longo do texto, a espera pelo seu amor, o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, é colocada em destaque e revela uma mulher que, antes de tudo, amou e foi fiel ao ex-senhor e companheiro durante dezesseis anos. Todavia, por mais que o livro possa sugerir a presença de um “conto de fadas” amoroso, a bibliografia arrolada ao final aponta para uma minuciosa pesquisa, em que se encontram trabalhos de peso.

Num processo de ressignificação de sentidos, romances e produções bibliográficas mais recentes priorizam uma versão humanizada de personagens historicamente estigmatizados. Foi exatamente isso que Joyce Ribeiro fez em seu romance: refez Chica a partir de uma série de valores humanos que foram esquecidos pelas narrativas anteriores. E o fez com o devido mérito.

 

Contos de Yõnu, Raquel Almeida

Elo da Corrente Edições

 

Trecho do prefácio de Sarah Soanirina Ohmer: Lembro de ler sobre escrevivência na teoria de Conceição Evaristo, e na reescrita de mulheres como definida por Miriam Alves, e de como Esmeralda Ribeiro recomendou combater o cânone da opressão com a auto publicação. Yõnu escolhe todas as três inequívocas inspirações de Raquel Almeida, e funde com a escrevivência por meio de uma escrita feminista publicada com o resistente Coletivo Elo da Corrente.

Ao mesmo tempo, Almeida não se furta de uma duradoura genealogia de mulheres negras como a humildemente cortante prosa de Maria Firmina dos Reis, a prosa urbana cotidiana de Carolina Maria de Jesus e a crítica social prosaica de Cidinha da Silva. Yõnu entra num palco bem povoado pela prosa de mulheres negras brasileiras, honrando escritoras do passado e pavimentando um novo e bravo caminho com um profundo mergulho nos temas ainda clássicos no século XXI urbano que chamam atenção sobre como multifacetadas, graciosas, vulneráveis e toda poderosas são as mulheres negras do Brasil. Yõnu é mulher sem remorso, e sem remorso sobre o amor negro revolucionário. 

Ela corajosamente nos força a nos vermos em cada uma de suas protagonistas, diretamente nos olhos, e ela olha para cada uma de nós e nos incita a perguntarmos a nós mesmas, sem medo. É tempo de sermos honestas, e olhar para a mulher negra do futuro além das mães pretas, mulheres objetificadas, socialmente assistidas ou gostosas.

Vamos olhar em direção ao futuro com Amondi, Chimwala, Ijaba, Zarina, Minkah, Latasha, Nochê, Mafunda, Sela, Chiwa, Ebiere, e Maria Padilha. Coloquem suas vestes brancas, senhoras e senhores, e rodopiem com essa dúzia de mulheres e se perguntem: O que Yõnu significará para você? Qual será o seu passaporte para a liberdade?

 

Das raízes à colheita, Benedito Lopes, Catita, Claudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira e Samira Calais

Editora Feminas

 

Segundo Ketty Valencio, no texto de orelha: Baobá é considerada uma das árvores mais antigas do planeta terra, originária de países do continente africano. Possui o sinônimo de ancestralidade e é símbolo de re(e)xistência da população negra do Brasil. As flores de baobá são uma espécie rara, exalam um aroma exuberante, com o desabrochar que acontece uma vez ao ano e que apenas dura cerca de um a dois dias.

Felizmente, no nosso território nacional, essas flores se transformaram em um coletivo literário formado por escritoras negras, que representam sete pétalas denominadas de Benedita Lopes, Catita, Claudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira y Samira Calais.

Nesse florescimento em formato de ciranda, nasceu o primeiro fruto-livro Das Raízes à Colheita, que destaca as corpas-vozes de sete mulheres. O livro é dividido em sete capítulos que resgatam a humanidade do matriarcado azeviche. Entre poesias, contos e crônicas, as narrativas são o retrato do cotidiano de mulheres plurais que encontraram o seu poder através da escrita. Uma obra a literária indispensável com versos, rimas, lirismo, pretuguês e escrevivências que revelam o protagonismo de cada subjetividade, porém que traduzem vidas coletivas.

Sobre o coletivo: O Coletivo de Escritoras Negras FLORES DE BAOBÁ nasce em 15 de dezembro de 2018, por iniciativa de Joice Aziza, no lançamento de Cadernos Negros 41, em São Paulo. À época, sete mulheres se uniram pelo entusiasmo e potência de suas escritas, impulsionadas pelo passado de todas que vieram antes, celebrando o presente e vislumbrando o futuro. Após mudanças em sua formação inicial, atualmente o coletivo é formado por Benedito Lopes, Catita, Claudia Walleska, Esmeralda Ribeiro, Joice Aziza, Mari Vieira e Samira Calais.

É um grupo fechado, que cultiva não apenas as escrevivências de cada uma e coletiva, como também o cuidado e zelo por todas, em parceria de escrita-vida, em laços fortes e complexos, como é a vida. Das raízes à colheita é o primeiro livro do grupo, fruto de sua caminhada até o presente momento. 

 

Veja também

 

Farrapos de ideias, Antonieta de Barros

Skript Editora

 

O livro Farrapos de Ideias foi escrito por Antonieta de Barros, com seu pseudônimo Maria da Ilha, e publicado originalmente em 1937. Agora finalmente volta ao mercado editorial brasileiro, sendo um dos mais importantes resgates históricos da literatura nacional recente.

Trata-se de uma obra que vai além da escrita da crônica diária e breve. É um texto híbrido em que escrita intimista e jornalística se misturam, fazendo com que a narradora/ cronista rompa com a imparcialidade proposta pelo jornalismo.

E nesse misto de memória pessoal e coletiva os silêncios e lacunas são reveladores de assuntos com os quais não consegue lidar, como bem destacaram as autoras e pesquisadoras Raquel Terezinha Rodrigues e Carla Alexandra Ferreira. Além da republicação dos textos originais, a obra traz também os textos da autora, inseridos na edição post mortem publicada por sua irmã, e paratextos das duas maiores especialistas sobre a autora: Jeruse Romão e Eliane Debus. 

 

Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, Jarid Arraes

Editora Polén

 

Segundo Alén das Neves Silva e Bruna Carla dos Santos, a obra Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes, publicada em 2017, traz à luz as histórias destas representantes negras que a historiografia brasileira corrente colocou no esquecimento. Este ato é bastante recorrente em nosso país, pois quer demonstrar que estar à margem e lutar por seus direitos é vergonhoso.

Mas em Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, a autora abarca momentos distintos da história do Brasil em que estas mulheres estiveram ocultadas e destaca como a participação das mesmas nos eventos foi decisiva para alcançar os objetivos. ...A obra de Jarid Arraes traz à luz ainda as figuras femininas de Aqualtunue, Esperança Garcia, Laudelina de Campos, Mariana Crioula, Na Agontimé e Zacimba Gaba – mulheres que vivenciaram atrocidades e abusos em suas vidas, mas estas situações não foram impedimento para que se empoderassem e inscrevessem seus nomes na memória social negra brasileira.

Não importando sua origem, brasileiras ou africanas, estas lutadoras são o insumo de uma liberdade da população negra. Diante do apagamento de sua condição de sujeito, hastearam suas bandeiras e deram suas vidas para que seus anseios se tornassem esperança de realizações até hoje almejadas.

 

Maréia, Miriam Alves

Malê Editora

 

Segundo Ariele Santos, a escrita de resistência de Miriam Alves sempre teve como projeto a afirmação da cultura, dos saberes e de toda uma memória negra abafada pelo processo de colonização. Desde os primeiros passos de sua carreira, a autora marca presença na literatura afro-brasileira com sua voz potente na poesia, na ficção e na reflexão crítica.

E sempre em consonância com o propósito afirmativo da negritude. Em Maréia – romance centrado no resgate de vozes ancestrais por muito tempo silenciadas, mas vivas nas várias linhagens da família negra que compõe o núcleo do enredo. Por meio de uma linguagem em muitos momentos marcada pelo poético, o texto põe em cena a espiritualidade demonizada ao longo do processo colonizador para com ela dialogar, fazendo emergir rituais e saberes próprios às religiões de matriz africana mantidas vivas nos corações e mentes dos personagens.

O romance se desenvolve a partir da tensão existente sobretudo entre as mulheres negras e a decadente família de brancos ricos com a qual se relacionam. Em capítulos alternados, a autora põe em cena os Nunes dos Santos, família negra que segue confiando em seus ancestrais escravizados e em sua espiritualidade, e que ascende em todos os âmbitos de suas vidas devido a seu esforço, sendo que este reconhecimento surge como uma forma de reparo histórico por todo sofrimento que seu povo passou. Do outro, os Menezes de Albuquerque, uma família branca, que sempre fora rica e dotado de status social elevado, aparece agora em decadência, como se uma dívida antiga estivesse finalmente sendo paga, levando estes personagens a infindáveis tormentos.

 

Mulher de Aleduma, Aline França

Segundo Aline Alves Arruda, o romance da autora baiana, Aline França,  narra a história de uma ilha desconhecida onde vivem os negros descendentes do velho Aleduma, primeiro vindo do planeta IGNUM, que é governado pela deusa Salópia. Lá, os negros vivem em perfeita harmonia e simplicidade até que ambiciosos brancos tentam transformar o lugar em um paraíso turístico. O início da narrativa já nos chama atenção pela paródia que a autora faz da criação do mundo na Bíblia.

Nas primeiras páginas, o narrador nos explica o nascimento da ilha de Aleduma semelhante ao que diz o Gênesis. O criador da ilha, entretanto, é um Deus negro, de inteligência superior, que sai de IGNUM a mando da Deus Salópia para povoar “certo continente da Terra”.

Aleduma, o deus negro, estaria encarregado de escolher o local onde se desenvolveria a raça negra. À semelhança de Adão e Eva, um casal vencedor de uma prova em IGNUM viria com o velho deus negro ao nosso planeta com a missão de povoar o continente escolhido. Assim como o primeiro casal bíblico, eles também andavam nus. Assim, a raça negra se desenvolve e ocupa o planeta, mas logo os filhos de Salópia se veem escravizados e pisoteados pelos brancos.

Aleduma, então, retorna à Terra e cria um refúgio para os irmãos negros numa ilha, o chefe Preto Velho dá ao lugar o nome em homenagem ao deus negro que a criou. Nessa interessante paródia percebemos a alusão do narrador ao nosso passado escravocrata e ao sofrimento que ele provocou.

E ao reconstruir a criação do mundo, a autora desconstrói a história branca, coloca seu ponto de vista afrodescendente criando os deuses negros e de inteligência superior. Além disso, Salópia, a deusa que governa IGNUM, o planeta onde a raça negra se originou no romance, representa a superioridade feminina que se confirmará ao longo da obra com outras personagens: Maria Vitória e Irisan são as mulheres escolhidas como intercessoras entre IGNUM e a ilha de Aleduma. A elas, os habitantes respeitam e obedecem. E uma das primeira obras de Afrofuturismo no Brasil.

 

Não é preciso ter útero para ser mulher, Lílian Paula Serra e Deus

Capa do livro

 

Segundo Karina de Almeida Calado, a autora deste livro de contos recolhe vozes e dores de mulheres, que são expostas cotidianamente ao sexismo e ao racismo, fazendo soar um desabafo coletivo, em contos curtos e dilacerantes. As narrativas recuperam biografias anônimas, marcadas pelo feminicídio, pelo memoricídio e pela necropolítica, resgatando-lhes o direito à existência.

As vozes enunciadas por Lílian Paula falam em seu nome; mas, também, em nome de uma coletividade, que figura nomeadamente marcada na história de corpos-mulheres, como Manuela, Quelly, Lélia, Ana Maria, Dona Dores, Elisa, Indira, Lívia, Amanda, Catarina, Maria, Ananda, Inácia, mães, filhas, avós, tias, mulheres e meninas, que se encontram em cada cena iluminada pela escrita deste livro.

Cada narrativa nos toma num fôlego único, impactando a nossa leitura com imagens fortes, representativas das múltiplas faces da violência cotidiana.

As dores-mulheres que atravessam a escrita de Lílian Paula interpelam a história do patriarcado branco em nosso país, cujas marcas expõem o trauma colonial, reencenado no racismo cotidiano.

 

Narrativas Negras - Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras

Capa do livro

 

Autoras: Anna Carolina Cardoso, Bruna Emanuele, Bruna Silveira, Enilse Esperança, Carol Bicalho, Flávia Souza, Gau De Laet, Heloísa Santana, Júlia Rodrigues, Juliana Cavalli, Leticia Fiuza, Lídia De Paula, Luana Simonini, Luiza Nasciutti, Maíra Oliveira, Márcia Gomes, Maria Vitória, Mariana Oliveira, Mariane Diaz, Raissa Lauana, Sabrina Santos Souza, Sheila Martins, Sílvia Barros, Tabatta Santos, Taís Espírito Santo, Thaís Santos, Vanessa Carolina e Vivi Oliveira. - Ilustradoras: Alda Gomes, Amanda Daphne, Amma, Ana Luisa Maisonnave, Anna Cunha, Áustria Fernandes, Beatriz Gabino, Bruna Melo, Daiely Gonçalves, Dani Fonseca, Dika Araujo, Fabiola Teixeira, Flávia Borges, Flávia Carvalho, Francisca Nzenze, Gabi Almeida, Gabriela Emmerich, Helena Butturini, Ina Gouveia, Isabella Souto, Isadora Ribeiro, Karen Couto, Lígia Mattos, Luísa Castro, Manoela Campos, Marcela Guimarães, Mariana Seragi, Mayara Smith, Mika, Millene Vilela, Nicolle Bustamante, Pamela Araújo, Prisca Paes, Rachel Gomes, Rayssa Da Penha, Soo Sakai, Suryara Bernadi, Theodora Moreira e Veri S.A.

Quem são as mulheres negras brasileiras que nos inspiram na atualidade? Elas tiveram referências negras no passado ou se sentiam representadas? Essas foram as perguntas de partida desta obra, que nasceu da escassez de conteúdos confiáveis sobre a história e a representatividade da mulher negra brasileira. Pensamos que compreender e conhecer nossas ancestralidades é de fundamental importância para mudar e construir um novo futuro, com mais força e identidade.

O livro Narrativas Negras nasceu da vontade de levar a história de mulheres negras brasileiras – que transformaram o rumo histórico do Brasil – até meninas e mulheres negras, que transformarão o amanhã do nosso país. Hoje, reconhecemos os apagamentos históricos sofridos pela comunidade negra feminina, que lutou e ainda luta de maneira ativa para a construção de uma sociedade mais justa.

Dessas mulheres, as representadas nesta obra são aquelas que não tiveram suas histórias contadas, ou mesmo que o tiveram, mas de forma questionável, sendo lembradas apenas em novembro, no Dia da Consciência Negra, ou em outras datas “especiais”. Já a seleção das personalidades femininas negras contemporâneas foi feita a partir de uma pesquisa quantitativa e qualitativa, com resultados que nos possibilitaram listar as personalidades que mais representam e são lembradas atualmente pela comunidade.

 

Negra Efigênia, Anajá Caetano

Capa do livro

 

Segundo o prefaciador deste livro, Eduardo de Oliveira: Anajá Caetano, autodidata que se envereda pelos ínvios caminhos das “belas letras” mais por vocação que mesmo por força de eventual diletantismo, inicia a sua vida literária com uma genial e bem-sucedida tentativa de reconstituição histórica por meio do romance. Pelo visto, não será este livro a sua última obra; contudo há de ser o que melhor manifesta a sua verve criadora e a sua vigorosa tendência de esteticista irrequieta e temperamental.

Negra Efigênia, paixão do senhor branco, por si é a afirmação eloquente do que acabamos de ponderar; é a obra com a qual, aliás, Anajá Caetano estreia auspiciosamente no mundo das letras. Retrata, com possível fidelidade em tais circunstâncias, todo um panorama político, social, econômico e religioso da época da fundação da cidade de São Sebastião do Paraíso, do interior do Estado de Minas Gerais, ali pelos princípios do século passado, citando com graça e vivacidade de espírito episódios e personagens; a atmosfera de luta e disputa de prestígio desencadeada entre os Maciéis, representando estes o nativo, contra os portugueses da metrópole, nas pessoas dos Barreiros, evidenciou aquele “caldo de cultura” sob cujo elemento ideal iam se plasmando, lentamente, os anseios de independência e de liberdade do povo brasileiro.

Sem qualquer preocupação de apresentar-nos um trabalho unicamente de tese, o livro de Anajá Caetano, entretanto, é bem entremeado de passagens, que, no mais das vezes, registram todo aquele sabor, aliás, muito ao gosto da natureza mística do negro, e que, nos instantes da sua exteriorização, escorria dos diferentes rituais ou cultos religiosos de procedência africana, denso e fecundo, cristalizando suas formas “negrificadas” em soluções sincretistas, hoje incorporadas inteira e definitivamente à beleza coreográfica do nosso bonito, original e opulento folclore. ... É escusado dizê-lo.

Enquanto houver um dos componentes da nossa comunidade, cuja sua imensa maioria permaneça excluída do contexto nacional, por força do analfabetismo que lhe acarreta, entre outros males, a sua falta de qualificação, a sua baixa renda “per capita”, o seu desestímulo à luta a ao labor edificante, o seu marginalismo, a sua miséria e a sua morte prematura, a voz das personagens a que se refere a romancista Anajá Caetano, que sofreram e batalharam com heroísmo e galhardia pela completa extinção do trabalho escravo em nosso País, continuará ferreteando a consciência coletiva dos homens desta Nação da América e a nossa sensibilidade de criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.

 

O Céu entre mundos, Sandra Menezes

Malê Editora

 

Segundo Sílvia Barros, a escrita de autoria negra é uma ponte entre mundos da memória e do futuro, a ficção recria um passado não-registrado e proporciona novos horizontes que talvez ainda não possam ser vistos, mas que podem ser imaginados. É a partir disso que Sandra Menezes escreve O céu entre mundos, na perspectiva afro-futurista que, por princípio, está diretamente entrelaçada com a memória.

Se nós, pessoas negras da diáspora, procuramos entender nossa história e conhecer nossa origem, somos nós também que vivemos em busca de futuros possíveis para vencer o aniquilamento. Por isso, na obra de Sandra Menezes, profissões como a de memorialista – profissão de Zaila, mãe da protagonista Karima – se aliam à de cientistas para construir uma sociedade avançada em outro planeta.

A tecnologia não pode existir sem as camadas de história e espiritualidade que nos compõem. Nesse movimento, O céu entre mundos é um romance para exercitar imaginação, formular uma realidade de comunicação por telepatia e naves voando para outros sistemas planetários, mas também para ter notícias de quem veio antes de nós, pessoas cujas existências já eram futuristas no passado, pois pavimentaram estradas para que nós caminhássemos.

Pensar por essa perspectiva é escapar da lógica ocidental e encaminhar nossa intelectualidade – espiritualidade, intuição, ori – para África. É na África que está a salvação da protagonista Karima, porque é lá que vive o ancestral com quem ela mantém conexão e diálogo.

 

O céu para os bastardos, Lilia Guerra

Editora Todavia

 

A história de uma trabalhadora doméstica brasileira que, vivendo na periferia, ocupa o centro da vida social graças à sua sensibilidade, simpatia e humanidade. É um romance sobreo sentido da emoção e da inteligência na realidade mais cotidiana. Num tom de crônica sobre a periferia, trazendo muito mais do que as questões graves que assolam esse espaço social, dando lugar para a delicadeza e o registro cômico, Lilia Guerra constrói aqui um riquíssimo painel da vida brasileira.

 

O crime do cais do valongo, Eliana Alves Cruz

Malê editora

 

Segundo Luiz Antonio Simas: o romance é narrado a partir das vozes de dois personagens, o livreiro mestiço Nuno Alcântara Moutinho e a moçambicana escravizada Muana Lomué, o romance apresenta um relato poderoso, cheio de sutilezas. É o cotidiano de um Rio marcado pelo horror da escravidão e, ao mesmo tempo, pela potência da cultura das ruas e da incessante reconstrução de sociabilidades produzidas pelas descendentes de africanas e africanos sequestrados do lado de lá do Atlântico...

Outro mérito poderoso do livro reside na apresentação de uma África pouquíssimo vista nas nossas letras: aquela da parte oriental do continente. A unidade portuguesa já é uma ficção. Minhotos, trasmontanos, beirões, alentejanos, algarvios, estremenhos, ribatejanos, açorianos e madeirenses — que normalmente não se encontrariam nem em Portugal — aqui se encontram e redefinem dinamicamente suas culturas, entre violências tantas e afetos vários, no contato conflituoso e/ou negociado com negros que não se viam como africanos, mas como membros de sua aldeia: mandingas, bijagós, fantes, achantis, gãs, jalofos, fons, guns, baribas, gurúnsis, quetos, ondos, ijebus, oiós, ibadãs, benins, hauçás ibos, ijós, calabaris, teques, bamuns, ijexás, anzicos, congos, andongos, songos, pendes, lenjes, ovimbundos, nupês, ovambos, macuas, mangajas, e outros tantos.

Por fim: Um livro escrito por uma autora negra, com protagonistas negros e contado a partir dos saberes afro-cariocas, já seria importante em um país em que o mercado editorial reproduz nossa desigualdade gritante. Além disso, O crime do Cais do Valongo é literatura da melhor qualidade e firma Eliana Alves Cruz como uma voz poderosa e contundente da literatura brasileira. Como diz em certo trecho a protagonista Muana, “uma mulher do meu povoado jamais poderia deixar seus antepassados de lado”. A literatura de Eliana faz exatamente isso.

 

O penalti, Geni Guimarães

Malê Editora 

 

Nesta narrativa que conta a história dos irmãos Kamau e Kaiodê, que, apaixonados por futebol, vivem uma situação que os coloca em posições opostas. Neste novo livro, Geni Guimarães faz uso de suas premiadas habilidades literárias para abordar o que há de mais sensível e tenro nas relações humanas, e, ao representar a família de Kamau e Kaiodê, demostra que é a ternura, o cuidado, o companheirismo e o amor que ditam as atitudes dos personagens, nos oferendo um belo retrato de uma família negra que se ama e se cuida.

 

Olhos d'água, Conceição Evaristo

Ed. Pallas/ Biblioteca Nacional

 

Em Olhos d’água Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem.

Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida? Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara” que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”. Em Olhos d’água estão presentes mães, muitas mães.

E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira

 

Quando me descobri negra, Bianca Santana

Da Fósforo Editora. Usar um turbante com cores vibrantes pela primeira vez, sentir o vento balançar os cabelos sem o peso dos produtos químicos, reconhecer nos filhos os traços da ancestralidade. Esses são alguns dos temas que Bianca Santana expurga em busca do encontro com sua negritude nesta nova edição, revista e ampliada, de Quando me descobri negra.

A autora traz à tona sua trajetória de autorreconhecimento e aceitação. Mesclando trechos autobiográficos à história recente do país com pinceladas de ficção, Santana narra sua passagem por um processo complexo de letramento racial, aceitação do corpo e reconhecimento familiar.

Tudo isso enquanto se desvencilha do racismo brasileiro presente no bairro de classe média, na cliente branca do restaurante que acha que negros são serviçais, na ação violenta da polícia, no bullying sofrido na escola e na desigualdade salarial no trabalho. Com a altissonante frase “Tenho trinta anos, mas sou negra há dez”, a autora inicia essa jornada que há tempos vem ajudando pessoas negras a se aceitarem e pessoas brancas a compreenderem o papel que podem desempenhar na luta antirracista. Com textos curtos e um olhar acurado, Quando me descobri negra é um verdadeiro marco no processo de diversos avanços que o movimento negro vem conquistando.

 

Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus

Editora Beduka

 

Segundo Célia Iarosz Frez: Quarto de despejo (1960) escritos por Carolina Maria de Jesus de maneira intermitente ao longo de 5 anos (entre 1955-1960). Carolina criou sozinha 3 filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice na favela do Canindé trabalhando como catadora de papel, e vendendo materiais recicláveis, apesar de ter estudado apenas 2 anos, ela prezava muito pela educação dos filhos e os fazia ir à escola mesmo com medo da violência da favela.

Nunca foi casada por escolha, ela retrata dois envolvimentos amorosos (Manoel e Raimundo), não fica com nenhum pois afirmava que conseguia sustentar os filhos sem precisar de homem nenhum. Outro traço sempre presente nos diários é a fome, Carolina muitas vezes sente-se doente e fraca devido à pobre alimentação, ou às vezes nenhuma; fome que deixa o mundo triste e amarelo, segundo a escritora. O leitor se sente tocado ao ver a angústia de Carolina.

A escritora, como sempre foi contra todo tipo de violência sempre chamando a polícia era chamada pelos vizinhos de intrometida. Carolina Maria de Jesus, preocupava-se com a situação político-social do país, falando em nome de todos os marginalizados do país, seus diários são a melhor descrição de realidade das favelas brasileiras da época (ou até mesmo das atuais).

Após a publicação de Quarto de despejo (1960), que foi traduzido para 13 línguas, Carolina mudou-se para uma casa no subúrbio, e se por um lado Carolina conquistou o apreço dos leitores com sua escrita ora coloquial, ora rebuscada, conquistou também o desprezo de seus vizinhos do Canindé por escrever “coisas ruins” sobre eles.

 

Reflexos, Ariele Santos

Editora Penalux

 

Segundo Giovanna Soalheiro: Reflexos (Penalux, 2023), primeiro livro da jovem escritora mineira Ariele Santos, parte dessas premissas, abordando o habitual por meio de uma linguagem reflexiva e sugestiva, como se pode ver no título ao livro. Não há aqui uma voz revoltosa, embora tal sentimento se produza em quem pensa a partir do objeto lido.

Os reflexos acionados no modo de narrar da autora produzem-se, portanto, como retorno: são reações, conscientes ou não, a um estímulo, a uma determinada ação. De modo geral, os textos narram a maternagem, o aborto, a relação entre pais e filhos, a vida de meninas e meninos que se deparam com contextos de submissão, opressão e violência.

O que se lê é ficção, mas aqui cabe lembrar a concepção de Eduardo de Assis Duarte (2005) em torno da autoria e da literatura negra: quem produz essas histórias é Ariele Santos – mulher negra bastante consciente da sua história, do seu percurso e de sua ancestralidade. Reflexos é composto de 11 contos, divididos em três partes: “A dor que atravessa”, “Ubuntu, ser porque nós somos”, “A energia da viva vida”.

Em muitos deles, notam-se procedimentos analógicos, metáforas e alegorias, tendo em vista ainda o pensamento filosófico africano Ubuntu: um vir a ser que se modula na relação com o outro, com a comunidade, com a ancestralidade que move o passado no presente.

 

Úrsula, Maria Firmina dos Reis

Editora PUC Minas

 

Segundo Laísa Marra, o enredo de Úrsula trata em primeiro plano da história de amor entre Úrsula e Tancredo, este um jovem sensível e afortunado, aquela uma mocinha igualmente sensível, porém bem menos afortunada.

O conflito da narrativa tem como centro a figura do tio de Úrsula, o Comendador Fernando P, o qual ambiciona casar-se com a sobrinha independente da vontade dela. Até aí nenhuma novidade. Pelo contrário, para conduzir a história dos seus protagonistas, Maria Firmina dos Reis lança mão de estratégias folhetinescas comuns de sua época, entre elas o incesto; as coincidências; a idealização do amor e seu impedimento por parte de um vilão.

Entretanto, costurado ao primeiro plano, há um universo distinto e pouco retratado em toda literatura oitocentista consagrada: a escravização dos africanos. É justamente nesse ponto que a narrativa de Reis ganha em originalidade e se afasta da bibliografia produzida em sua época. Para construir as personagens negras e escravizadas Túlio, Susana e Antero, Maria Firmina dos Reis praticamente não tem modelos, já que na tradição brasileira do Romantismo, a qual se formava naquele momento, os africanos e afrodescendentes foram objetivamente invisibilizados em nome da criação de uma identidade brasileira que pudesse espelhar as ambições étnico-nacionalistas da elite pertencente ao centro do campo literário.

É, portanto, admirável que Reis tenha dado corpo e voz a personagens negras e que, além disso, elas sejam representadas como seres humanos: pessoas que têm nome, história e memória. Pessoas que, ademais, discutem entre si o sentido de liberdade – conceito este fundamental para as revoluções do século XVIII, bem como para a estética do Romantismo.

Por esse viés, a contemporaneidade de Maria Firmina dos Reis reside na articulação de sua escrita artística a uma ética humanista antirracista. Como bem observa Eduardo de Assis Duarte (2017b) no posfácio "Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental", o qual acompanha esta sexta edição, Maria Firmina dos Reis é uma pioneira em muitos sentidos. Não só é uma das primeiras autoras a publicar romance no Brasil, como também é uma precursora no que diz respeito à tematização da escravidão, se mantendo até hoje como um ponto fora da curva na representação do negro na prosa brasileira canônica.

Base da pesquisa: LITEAFRO - O portal da Literatura Afro-Brasileira 

 

Quem é Plínio Camillo

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Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.

Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento

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