Com a lei que institui a escola sem telinhas, crianças redescobrem o valor do brincar, da convivência e da aprendizagem sem distrações digitais
Célia Bastos* Publicado em 22/09/2025, às 06h00
Por muito tempo, ir para a escola era sinônimo de caderno, lápis, lousa e recreio. Estudar, interagir e brincar, essa era a rotina dentro de uma sala de aula. Só que, nos últimos anos, as telas dos celulares, tablets e laptops foram invadindo esse espaço. Silenciosamente, os aparelhos deixaram de ser um recurso para emergências e passaram a dividir, ou até roubar, o protagonismo da aprendizagem.
Eu sou de outro tempo, minha geração só entrou no mundo digital quando já era adulta. Lembro bem de quando minhas filhas começaram a levar o celular para o colégio. Já eram adolescentes, e o aparelho servia apenas para uma comunicação rápida comigo. Hoje, a história é bem diferente. As crianças já nascem conectadas e, para elas, ficar algumas horas longe do celular parecia algo impossível.
A sanção da Lei 15.100, em janeiro deste ano, desafiou esse cenário. Agora, o uso de celulares dentro das escolas está proibido para os estudantes em qualquer momento do dia. Só é permitido quando o aparelho for utilizado com fins pedagógicos. A medida atinge mais de 47 milhões de crianças e adolescentes da educação básica no Brasil e, na minha visão, é uma conquista para todos. A escola volta a ser espaço de concentração, troca, aprendizado. Um espaço de formação integral que não deve concorrer com as distrações das telas.
Estudar exige esforço e concentração, aprender nem sempre é fácil ou divertido, mas é assim que se cresce. Quando o celular está por perto, ele se torna o principal concorrente da aula, e quase sempre ganha. O prejuízo é coletivo. A Unesco analisou dados de 14 países e concluiu que a simples presença do celular já é suficiente para tirar a atenção dos estudantes e prejudicar o processo de aprendizagem. O impacto não é momentâneo. Pesquisas mostram que, a cada vez que olhamos para o aparelho, nosso cérebro leva cerca de 20 minutos para recuperar o foco total. Se cada aula dura aproximadamente 50 minutos, uma única distração pode comprometer quase metade desse tempo.
As consequências da mudança foram positivas até fora da sala de aula. Nos intervalos, os celulares haviam se tornado os principais companheiros dos alunos. Era comum ver grupos inteiros de crianças e jovens juntos fisicamente, mas cada um imerso na própria tela, em silêncio. Com a nova regra, esse tempo livre ganhou vida. Voltaram os jogos, as conversas, as brincadeiras espontâneas. A convivência se fortaleceu com nossos filhos voltando a olhar uns para os outros.
Essas percepções não são apenas sentimentos. Há pouco tempo li uma matéria na imprensa brasileira que comentava que escolas da capital paulista tiveram uma melhora média de até 20% nas notas, quando comparadas com o primeiro bimestre de 2024. A mesma reportagem informa que a experiência do Rio de Janeiro, onde a proibição vigora desde 2024, reforça os resultados. Uma pesquisa da Secretaria Municipal de Educação carioca apontou que alunos do 9º ano tiveram 53% mais chances de alcançar o nível adequado em matemática; no 8º ano, o aumento foi de 32%. A pesquisa também apontou queda nos casos de cyberbullying durante intervalos.
Assim que a lei foi aprovada, conversei com os clientes da Circana, que inclui fabricantes, distribuidores e varejistas, para mostrar que esse era também um momento de oportunidades. Empresas poderiam se aproximar das escolas e dos estudantes, apoiando o resgate do brincar coletivo, que se perdeu nas últimas décadas. Fiquei feliz quando um de nossos clientes doou jogos ao colégio Dante Alighieri, em São Paulo, incentivando a consciência digital e a valorização da infância. Um gesto simples, mas com enorme impacto.
Brincar é essencial para a saúde física e emocional das crianças e, sobretudo, para o desenvolvimento da socialização. É no brincar que os jovens aprendem a conviver, negociar, se expressar, resolver conflitos, entender limites e criar vínculos afetivos. Torna-se um adulto mais equilibrado. Ver a escola, livre das distrações das telinhas, é um alívio. Mais do que uma medida regulatória, é um cuidado com o futuro. Um passo importante para reconectar nossas crianças com o presente, com o outro e com o que realmente importa.
*Célia Bastos é diretora executiva da Circana
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