A relação entre patriarcado, machismo e misoginia, e como esses conceitos se interconectam na opressão das mulheres. Um artigo de Cida Gonçalves
Aparecida Gonçalves* Publicado em 01/12/2025, às 06h00
A misoginia (do grego miseó, "ódio", e gyné, "mulher") pode ser entendida como a aversão, a repulsão mórbida, o ódio ou desprezo por mulheres, segundo Berger (2019). A misoginia está ancorada no patriarcado. Temos uma trinca de conceitos que deve ser pensada em conjunto: Patriarcado, Machismo e Misoginia. O patriarcado diz respeito ao modelo de organização social e familiar, é a manifestação e a institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e os filhos de uma família e a ampliação desse domínio masculino sobre as mulheres e a sociedade em geral” (LERNER, 2019, p. 390).
O machismo por sua vez funciona como uma "tecnologia do patriarcado". Conceito presente, principalmente, nas teorias feministas, sociológicas e filosóficas, evidencia que o machismo não está restrito a um conjunto de atitudes individuais, pois ultrapassa o individual e atua no coletivo com um conjunto de ferramentas e práticas sistêmicas que dá o sentido à expressão “tecnologia do patriarcado”. Machismo e Patriarcado se retroalimentam. Mariana Valente, em seu livro “Misoginia na Internet”, coloca que “O conceito de misoginia de Manne é o de um “sistema que opera dentro de uma ordem social patriarcal para vigiar e fazer valer a subordinação das mulheres”.
A misoginia ocupa a função discursiva mais poderosa do machismo. Como bem destaca a filósofa brasileira Marcia Tiburi, “O ódio tem sido um grande capital movido pela cultura patriarcal, que sempre usou a misoginia como aspecto do psicopoder em todos os tempos e não é diferente agora. Pelo contrário, o discurso do ódio, da aversão, da objetificação da mulher não sujeita de direitos pretende dar à mulher a condição de subcidadã e assume outras formas encontrando eco, cada vez mais forte, nas esferas online. É a misoginia 5G. Hoje em dia, utilizando as mesmas narrativas e estratégias absurdas de milhares de anos atrás, grupos masculinistas ou o chamado movimento Machosferas propagam e incentivam a diminuição das mulheres, criam aversão e incentivam o ódio por meio das Redes Sociais.
Uma pesquisa, intitulada "Aprenda a evitar 'este tipo' de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no YouTube", realizada em 2024, pelo Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais - NetLab/UFRJ em parceria com o Ministério das Mulheres, revelou uma dimensão alarmante da misoginia na plataforma brasileira. Foram analisados 76 mil vídeos de 7.812 canais, com mais de 4,1 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentário. A pesquisa identificou 137 canais com conteúdo misógino. Em seus conteúdos, os influenciadores propagam ódio, aversão, controle e desprezo às mulheres. Entre as mais atacadas estão as feministas, as mães solteiras e as mulheres com mais de 30 anos.
Esses números evidenciam a existência de uma rede considerável e organizada de produtores de conteúdo misóginos. Cento e cinco mil vídeos publicados nessas contas que somam mais de 3,9 bilhões de visualizações. O total de 3,9 bilhões de visualizações é a métrica mais crítica, reforçando que as mensagens misóginas estão sendo absorvidas por uma parcela acentuada do público brasileiro, tendo, por sua vez o poder de normalizar e intensificar a violência de gênero no ambiente digital e fora dele.
Outro dado que não pode ser ignorado na pesquisa é que 52% dos canais misóginos contam com ao menos um vídeo com anúncios. A pesquisa que não se se limitou a contar canais, também aprofundou-se em analisar as estratégias discursivas utilizadas para disseminar o ódio. O foco em "monetização da misoginia" aponta para a preocupação do NetLab em expor como o ódio e a violência de gênero se tornaram um modelo de negócios rentável dentro da plataforma, possivelmente via anúncios e patrocínios, incentivando a produção contínua desse material. O desprezo pelas mulheres às mulheres e a insurgência masculina aparecem como vetores dos assuntos recorrentes dos canais. O mais grave é que 80% dos canais utilizam a prática de monetização, ou seja, cobram para construírem conteúdos de ódio contra as mulheres. A pesquisa mostra que alguns cobram até R$ 1.000,00 (mil reais) para atendimento pessoal.
A Aliança HeForShe, movimento de solidariedade pela igualdade de gênero, criado pela ONU Mulheres, também revelou preocupação ao apresentar seu Relatório de Impacto 2025, realizada sob o tema Masculinidades Igualitárias e Espaços Digitais Seguros. O relatório deste ano coloca especial atenção na segurança online, devido ao aumento preocupante de ecossistemas online que disseminam misoginia, desinformação e normas de gênero regressivas.
Os dados das pesquisas provam que a misoginia é uma construção cotidiana planejada e executada por grupos ou indivíduos organizados para submeter, desvalorizar e criminalizar o avanço e conquista das mulheres nessas últimas décadas. Os espaços virtuais de interação social, de conhecimento, de literatura, de cultura, dentre outros, precisam avaliar seus conteúdos e entenderem, em definitivo, que o discurso de ódio, de violência, de discriminação e de preconceito contra a mulher não é direito à liberdade de expressão. Todo conteúdo que destila ódio é, na verdade, um movimento de atraso social que tem seu aporte no conservadorismo e no fascismo que não aceita as diferenças e a diversidade como valores fundamentais da pessoa humana, em especial, os das mulheres.
Ideias diferentes, a diversidade e a igualdade são pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. Ao buscar o ódio como forma de dominação e posição política ideológica, esses grupos normalizam a morte, a violência e a sujeição da mulher engendrando com a política, por meio de comportamentos e discursos que busca garantir e perpetuar dominação do homem sobre a mulher, fortalecendo o sistema patriarcal.
A Democracia e a Igualdade só serão possíveis em uma sociedade com valores e comportamentos de respeito às diferenças, convivência com a diversidade, respeito e solidariedade. Precisamos investir na capacidade de consolidar novos processos de construção onde a paz, a alegria e a ternura sejam o alicerce principal de viver em comunidade. O Brasil que se coloca no mundo como o País do carnaval, do futebol, das festas juninas, mas também, de manifestações de afetos, da solidariedade e alegrias, não pode ser o País que tolerará o ódio monetizado como se fosse commodity, refletida na violência, no estupro, no feminicidio e na misoginia.
* Aparecida Gonçalves é Consultora Especialista em Violência Contra a Mulher e ex-Ministra de Estado das Mulheres
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