Entenda os aspectos jurídicos que envolvem o caso Daniel Alves e quais os impactos do que aconteceu e da repercussão na mídia
Mariana Kotscho* e Valéria Scarance** Publicado em 09/02/2024, às 11h00
Após mais de um ano de prisão, três dias de audiências e dezenas de testemunhas, o Tribunal de Barcelona concluiu o “Juízo Oral” no processo contra Daniel Alves, que aguarda a sentença.
Daniel Alves está sendo acusado da prática de “violação sexual”, equivalente ao crime de estupro no Brasil, previsto no artigo 179 do Código Penal Espanhol, com pena de 04 a 12 anos.
Em razão da gravidade do crime, para o qual é cominada pena maior de 09 anos, foi adotado o procedimento ordinário, mais amplo e sob a responsabilidade de três Juízes.
No Juízo Oral, semelhante à audiência de instrução e julgamento do Brasil, foram ouvidas a vítima, testemunhas de acusação e de defesa, peritos e ao final interrogado Daniel. Embora a audiência tenha sido pública, durante o depoimento da vítima sua voz foi distorcida e sua imagem preservada, já que ela optou por não ter sua identidade revelada. Um exemplo a ser seguido em nosso país que lamentavelmente muitas vezes estampa o rosto e imagens da vítima, causando uma estigmatização irreversível.
Alguns pontos geraram questionamentos na Europa e Brasil, como o laudo negativo e a justificativa de Daniel de que “estavam desfrutando”, não praticou o ato violento e estava "fora de si" .
Também é importante ressaltar o trabalho da imprensa internacional e nacional: ambas preservaram a identidade da vítima o que é uma atitude importante para evitar a chamada revitimização, que é quando ações ou atitudes provocam novamente o sofrimento da vítima – o que pode acontecer num interrogatório, numa entrevista, numa reportagem ou em redes sociais, por exemplo.
Nota-se também, neste caso, um respeito maior de jornalistas em relação à vítima no cuidado para que reportagens não façam pré-julgamentos ou assumam a postura de culpar a vítima e inocentar o agressor, prática infelizmente ainda tão comum nestes casos. Será que, finalmente estamos evoluindo neste sentido enquanto sociedade?
Por outro lado, nas redes sociais ainda vemos muitos julgamentos da vítima e vitimização do réu, como se fosse possível comparar sofrimentos ou justificar atos: “ela foi estuprada, mas o que fez para provocar isso”?. “Coitado, ele acabou com a carreira por uma noite”. Em todas as reportagens é mencionado o trauma da vítima.
Alguns pontos geraram questionamentos na Europa e Brasil, como o laudo negativo e a alegação de que Daniel e a moça “estavam desfrutando”, que ele não praticou o ato violento e estava “fora de si”.
Ao contrário do que se imagina, a perícia negativa em crimes de estupro é a regra e não a exceção. Vestígios físicos desaparecem rapidamente, em até 24 horas para boca, pele e ânus e em 72 horas para órgão genital feminino (Procedimento Operacional Padrão de Medicina Legal – Sexologia Forense). Ainda que a perícia seja feita nesse prazo, na maioria dos casos de violência sexual os laudos são negativos para ferimentos íntimos (não há rompimento, lesões genitais, outros ferimentos) e, assim, esse resultado não exclui a ocorrência do estupro.
Os índices de laudos positivos são maiores quando há a apreensão de roupas e objetos relacionados ao estupro, como aconteceu no caso em julgamento, já que o vestígio da vítima foi apreendido. Nesse sentido, estudo realizado em Coimbra e referido por Sara Joana Jorge Faria: “A grande percentagem de vestígios com significado foi recolhida não do corpo, mas sim das roupas pessoais ou de outros objetos pertencentes à cena do crime”.
O segundo ponto diz respeito ao impacto processual das alegações de Daniel em seu interrogatório.
Assim como no Brasil, enquanto acusado em um processo, Daniel tem o direito a se autodefender e ter assistência de advogado. Não é obrigado a falar, mas o que disser pode ser usado como elemento de convicção.
No caso, Daniel alegou que a relação foi consentida (“estávamos desfrutando e nada mais”) e havia ingerido muitas bebidas alcóolicas (“estava fora de si”), como também alegaram as testemunhas de defesa arroladas – dono da boate e ex-esposa do futebolista.
Se a vítima ingressou ou não no banheiro por vontade própria é irrelevante. O que importa é verificar sua vontade no momento em que ocorreu o ato sexual.
Na Espanha, exige-se expresso consentimento inequívoco para que um ato não seja considerado violência.
Desde 2022, há a Lei de Liberdade Sexual na Espanha, conhecida como “solo si es si” (só o sim é sim), em resposta a um processo de estupro coletivo conhecido como “La Manada”, em que cinco homens violentaram uma jovem de 18 anos com sexo oral, anal e vaginal e filmaram o ato, mas não foram condenados por agressão sexual, ante a ausência de prova de violência ou intimidação.
“Só o sim é sim” e, na expressa letra da lei, para que não exista ofensa à liberdade sexual, é necessário que a pessoa “tenha manifestado livremente mediante atos que, em atenção às circunstâncias do caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa” (art. 178 do Código Penal Espanhol).
Mais emblemática é a alegação de ausência de culpabilidade pela embriaguez.
No Brasil, adota-se a teoria da “actio libera in causa” (ato livre na causa) e, assim, quem consome bebidas alcóolicas por sua vontade e pratica um crime, responde por esse crime, ainda que tenha sua capacidade alterada (ar. 28, II, do Código Penal Brasileiro).
Diversamente, na Espanha, a tese da embriaguez pode produzir efeitos.
O Código Penal Espanhol permite a completa isenção de pena para a pessoa que, ao tempo do crime, estava em estado de intoxicação “plena” por álcool ou outra substância, que afete sua capacidade de entendimento e determinação (art. 20, par. 2º, Código Penal Espanhol). Se há redução parcial dessa capacidade, a pena pode ser atenuada (art. 20 do Código Penal Espanhol).
Raramente os Tribunais Espanhóis reconhecem essa isenção de pena para condutas criminosas que envolvam uma ação (e não omissão), como é o caso de um ato sexual. Mas – é importante destacar – há várias decisões que reconhecem a atenuante de redução da capacidade pela embriaguez, salvo a se pessoa se embriagou para cometer o crime.
A atenuante de embriaguez, associada a outra atenuante da reparação do dano, pode levar a uma grande redução da pena, apesar dos pedidos da advogada da vítima e do Ministério Público de que sejam impostas penas de 12 anos e 9 anos, respectivamente, além da reparação do dano de 150.000 mil Euros e liberdade vigiada.
Em um mês, a sentença deve ser divulgada publicamente, mas o processo por si só já serviu de grande exemplo para o mundo, para desmistificar a violência e impulsar a criação de protocolos.
No Brasil, um país em que acontecem 75.000 estupros por ano e metade das mulheres sofreu assédio, mais do que dizer “não é não”, precisamos lutar pelo “só o sim é sim”.
*Mariana Kotscho é jornalista e consultora voluntária do Instituto Maria da Penha
**Valéria Scarance é Promotora de Justiça especializada em violência doméstica MP-SP e Professora da PUC-SP
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