Regina Célia Barbosa, vice presidente do Instituto Maria da Penha, escreve neste Dia Internacional da mulher negra latino-americana e caribenha
Regina Célia Barbosa* Publicado em 25/07/2024, às 06h00
Regina você já ouviu falar na atuação dos hemisférios direito e esquerdo do nosso cérebro? Perguntou uma gestora com quem eu trabalhei, há muitos anos. Eu respondi sim, claro! Por que a pergunta? Enquanto ela abria um material para me apresentar um slide, eu pensava: por que ela vai falar comigo sobre esse mito? Ela então abriu um slide onde apresentava a figura de um cérebro dividido pelos hemisférios direito e esquerdo com as suas características e funções. Ela segue apresentando alguns destaques, sobre a distinção entre os hemisférios e depois se refere a mim apresentando onde estavam localizadas as minhas melhores habilidades. E essas estavam centradas, segundo ela, no hemisfério direito.
Naquele momento fiquei paralisada, pois já sabia do que estava nas sombras daquela narrativa. Prosseguindo na demonstração, resumidamente, na sua perspectiva eu sou uma pessoa com uma inteligência interpessoal admirável, com um senso de humanidade aflorada, altruísta, de uma empatia ímpar, super criativa e de uma habilidade na comunicação impressionante. Mas, no que diz respeito ao hemisfério esquerdo (hemisfério responsável, segundo a sua demonstração, pela capacidade intelectual, analítica, estratégica, do raciocínio lógico que poderia destacar o imperativo da excelência, no que diz respeito a gestão), bem nesse hemisfério eu “deixo a desejar”.
Em síntese, o meu desempenho sob o comando do hemisfério esquerdo não atende as exigências de uma lógica que promova celeridade nas ações, capacidade de resolução diante dos problemas que ocorrem no dia a dia de uma gestão corporativa. Assim, por esta perspectiva, eu não tenho realmente dons, condições, aptidões e talentos para liderar, principalmente se eu estiver sob pressão. É claro que essa experiência para mim foi devastadora em razão do confronto resultante de uma leitura e atitude racista e, portanto, discriminatória que se utiliza do "mito dos hemisférios" para carimbar análises pseudocientíficas da supremacia branca.
Bem, é daí para pior quando nós mulheres negras encaramos, no dia a dia, o racismo de pessoas que estão bem próximas e que muitas vezes sustentam algumas falas em sua defesa: “Eu racista? De forma alguma, muito pelo contrário! Quero dizer, inclusive que a minha melhor amiga é negra!”.
Contudo, há pessoas que consideram que nem todas as mulheres negras conseguem desenvolver competências e habilidades que sejam reconhecidas com notoriedade pelo mundo corporativo, por exemplo. Neste mundo há uma imposição constante de testes de capacidade sobre as mulheres e, especialmente, sobre as mulheres negras os testes são validados por uma estrutura que tem um lugar, um tempo marcado pela cultura do colonialismo cujo status quo insiste em dar significado, reconhecer e perceber a minha existência, como uma “outridade” sem “alteridade”, que precisa ter uma métrica, definida pela branquitude, e que deve ser alcançada: a métrica do imperativo da excelência.
Essa métrica, de forma privilegiada, é constituída pelas normas, valores e marcadores construídos pelo universalismo da branquitude, que se apresenta no cotidiano das relações étnico raciais. A validade do que somos depende dessa métrica. Só seremos reconhecidas se estivermos dentro desta caixa que nos padroniza e traz como resultado a seguinte expressão:
"Gente, que negra competente, não é mesmo? Nossa, que guerreira! Isso foi o resultado de muita luta, esforço e disciplina"
É só depois deste reconhecimento que você tem respeito, acolhimento, e pode começar a ascender nos níveis que lhe são "concedidos". Uma espécie de processo da longa caminhada da "senzala à casa grande".
Mas, é fundamental que este imperativo da excelência seja desmantelado. Neste aspecto, Grada Kilomba, em entrevista ao Roda Viva em maio deste ano afirma que:
Precisamos perceber o empoderamento no saber e no não-saber. Eu não sei tudo. E nem tenho que saber tudo. Nem tenho que vencer tudo. Nem tenho que ser excluída de tudo. Nem tenho que estar presente em tudo. Eu tenho que seguir o meu caminho conforme as minhas questões e as minhas respostas. Nós devemos abandonar a equação da idealização e da desidealização. E é esse abandono que vai me possibilitar ser humana. E o que é uma pessoa humana? É uma pessoa que sabe, e que às vezes não sabe.
Para Grada Kilomba (2024), o verdadeiro empoderamento de qualquer pessoa negra, de qualquer pessoa de uma diáspora, de qualquer comunidade marginalizada é ter a liberdade de ser humana.
Acredito que é em meio as sutilezas e agressividades, das narrativas às atitudes que vivenciamos do racismo cotidiano, é necessário enfrentar as tramas que esse racismo utiliza quando oferece, por exemplo, o mito dos hemisférios para nos impor uma métrica para nos desqualificar e que, portanto, não nos define. Não diz quem eu sou e, por isso eu não o reconheço. E porque eu não o reconheço eu tenho a liberdade de pensar e existir para além dos hemisférios.
* Regina Célia Barbosa é professora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha
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