Mordidas entre crianças na creche: como acolher, cuidar e prevenir?

O incidente pode não ter acontecido na intenção de agredir, mas é necessário construir um ambiente propício para evitar as mordidas de crianças

Damaris Gomes Maranhão* Publicado em 12/08/2022, às 06h00

Para as crianças pequenas, a mordida é uma ferramenta -

Escrevo este texto após ler uma matéria sobre uma mãe que registrou na delegacia um Boletim de Ocorrência denunciando a creche onde sua filha, menor de dois anos, por mais de uma vez, foi mordida por outra criança. Embora sejamos solidárias com a dor e desconforto da criança ferida e o sentimento materno ao observar as lesões na pele de sua filha, é preciso aprofundar esse tema, pois esta não é a primeira ocorrência desse tipo. Mas a escola poderia evitá-la? Como? Qual foi o contexto, a idade da criança que mordeu a sua filha, que cuidados foram prestados à criança ferida e como o fato foi comunicado à família? Precisamos discutir este problema tanto da perspectiva da família como dos educadores e gestores da primeira etapa da educação infantil que atende os menores de três anos, quando ocorrem a maioria dos casos de mordidas entre crianças.

Os bebês nem sempre mordem para “agredir o outro”, mas pode ser uma forma primitiva de interação com o meio, ou seja, uma fase do desenvolvimento. Abrir a boca e tocar a pele da própria mão, ou o corpo materno, ou do outro que está próximo é uma ação que permite conhecer o mundo que recém habita. Aos poucos, ao conhecer e dominar mais seu próprio corpo, através da interação com as pessoas com quem convive, a criança aprende a interpretar e imitar a mímica facial, a expressão do olhar, a vocalização, o gesto, movimentos que constituem as diversas linguagens humanas. Assim, é preciso primeiro analisar a partir da idade e desenvolvimento potencial e real de cada criança e o contexto onde o fato ocorreu ou poderá ocorrer, para preveni-lo. Em que momento, ambiente, horário, situação?

As capacidades sensoriais da boca humana a torna uma espécie de primeiro olho a partir das experiências do feto dentro do útero materno, quando sua sensibilidade e motilidade está sendo desenvolvida pela deglutição do deglutição do líquido amniótico onde está submerso, preparando-o para a amamentação. O elo com o meio ambiente começa na boca e é ai que aparecem as sensações primitivas iniciais, as reações psicológicas primárias.” (Vygotsky, Luria, 1996:155).

Assim, as sensações desencadeadas pelo toque com os lábios, com a língua e, depois dos seis meses com a   erupção da primeira dentição, da pressão dos dentes, ou seja, a mordida, é uma reação primitiva no contato com qualquer objeto e com o corpo do outro. Com o desenvolvimento potencial gradativo, ela aprende com a mediação dos adultos e crianças maiores as novas formas de interação – a mímica facial, a expressão do olhar e da voz, o gesto que constituem as diversas linguagens humanas.

Pela experiência ele aprende que a mordida é uma ferramenta, tanto para mastigar um alimento, cortar um objeto ou provocar reações no outro. Algumas mães referem que seus bebês no segundo semestre de vida, quando começa a erupção dentária, mordem o seio delas, sem querer machucá-las mas por impulso e aprendendo a usar “”as novas ferramentas”.

Mesmo os adultos ao interagirem com um bebê o tocam com a boca para beijá-lo, tocar sua face, as vezes brincam de “mordê-lo”. Assim, não podemos generalizar, ou seja, a mordida envolveu crianças de qual idade, em que momento, em que espaço, horário, situação?

 

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Os pioneiros da neurociência aplicada a educação infantil citados acima reiteram que não podemos julgar as crianças com base na perspectiva de um adulto desenvolvido. As crianças crescem e se desenvolvem desde a gestação mas após o nascimento precisam da mediação de um adulto como companheiro mais experiente para protegê-las, alimentá-las, comunicar-se com elas a partir do seu desenvolvimento potencial que resultará no seu desenvolvimento real. O desenvolvimento potencial é aquela fase em que a criança tem algumas habilidades mas ainda precisa de ajuda de outra pessoa para compreender e agir em uma situação. E esta participação na sociedade com ajuda do adulto e que possibilitará a sua autonomia. Então a primeira coisa é compreender que é diferente o motivo de uma mordida de um bebê em fase de erupção da primeira dentição que se completa aos dois anos, da criança que aprendeu a usar essa ação para reagir a uma emoção, numa crise de birra ou ao disputar um brinquedo ou a atenção do cuidador.

Em torno dos três anos ao já ter a construído a consciência de ter um corpo separado do outro, desejos diferentes do outro, ela começa a impor sua vontade, o que chamamos de crises de birra ou conforme Henry Wallon, outro neurocientista e pedagogo francês, denominou de “fase do personalismo”. Crianças que ainda não desenvolveram recursos verbais para convencer o outro poderão morder para conseguir o que deseja ou se defender. Assim, a atitude do professor e do familiar deverá ser adequada ao desenvolvimento potencial de cada criança, mas sempre de forma afetiva e não agressiva.

O ambiente também pode contribuir ou evitar este incidente, É comum ocorrerem mordidas com maior frequência em espaços pequenos onde as crianças ficam muito próximas, com um número de educadores insuficientes para o grupo etário conforme a legislação sanitária para Centros de Educação Infantil, conhecidas como creches. A insuficiência de brinquedos também pode originar disputas entre as crianças.

E preciso também considerar que há um espaço virtual em torno do nosso corpo onde toleramos ou não a presença e toque do outro, que pode ser interpretado como invasivo, um ataque do outro do qual precisamos nos defender. Este espaço de distância tolerável do outro é construído conforme se desenvolve a percepção da consciência de se ter um corpo separado de nossa mãe durante os dois primeiros anos, concomitante com as aprendizagens sobre as técnicas corporais de cada cultura. Lembro que quando visitei o Museu D´Orset, em Paris, ao perguntar para o senhor que controlava as filas toquei-o delicadamente no ombro e ele reagiu de uma forma negativa. Eu havia esquecido as recomendações da minha colega de viagem – evitar se aproximar a menos de um metro e tocar as pessoas pois isto era pouco tolerado entre os franceses, diferente dos brasileiros.

Analisei uma situação em creche corporativa onde uma criança mordeu outra que estava em fase de adaptação e que nos evidenciou no caso, uma disputa de atenção do professor. Outro caso, em Centro de Educação Público, um menino de aproximadamente três anos, com histórico de ter mudado de escola porque tinha um comportamento agressivo de oposição e, quando contido, mordia as mãos e braços do educador que o segurava. Nesse caso precisamos de maior investigação e apoio à criança e família, em parceria com profissionais especialistas.  

As crianças desde o nascimento desenvolvem diversas habilidades para conhecer a si mesmo na relação com os outros, assim conforme o meio em que é cuidada e educada, a lidar com os conflitos inerentes à convivência com os outros, para que não resultem em agressão, violência. Assim, embora a mordida possa ser usada como ato de ataque e defesa, por todos os animais, inclusive pelos humanos, é preciso analisar cada etapa do desenvolvimento em que esse ato ocorre, assim como sua capacidade de conter impulsos. A região frontal do cérebro que possibilita plenamente esse controle só está desenvolvida plenamente no final da adolescência.

Finalizando, é preciso cuidar da criança mordida, lavando com água fria corrente as lesões, colocando compressas geladas para reduzir a dor e encaminhando-a para a avaliação do pediatra com uma carta com descrição do incidente, cuidados adotados, situação de saúde das crianças envolvidas e informando a família sobre o que levou à esta ocorrência, mantendo sigilo ético sobre a criança que a mordeu.

 

Damaris Gomes Maranhão

 

*Damaris Gomes Maranhão é enfermeira Especialista em Saúde Pública UNIFESP/USP, Dra em Ciências da Saúde pela UNIFESP, Professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, Consultora do CEDUC e Formadora no Instituto Avisalá, Mãe do Bruno e da Melissa, avó da Clara.

damarisgomesmaranhão@gmail.com

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