A prevalência de violências contra crianças e adolescentes no lar e o debate sobre o aborto legal
Érika Pucci da Costa Leal* Publicado em 05/07/2024, às 06h00
A violência contra crianças é um fenômeno complexo que envolve fatores socioeconômicos e histórico-culturais, como a percepção de crianças sendo objetos de intervenção e de dominação dos adultos.
Historicamente, a violência contra crianças se apresentou de diferentes formas: filhos eram tratados como objetos passíveis de venda; crianças poderiam ser oferecidas em sacrifícios; diversos fatores determinavam que um pai decidisse pela vida ou a morte de um filho.
Ao longo do tempo, a visão social acerca da criança foi alterada em decorrência do processo contínuo de construção dos direitos humanos.
Inicialmente, sociedade e Estado focaram apenas na proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, sem a compreensão de que os serviços que disponibilizavam decorriam de direitos específicos e não seriam apenas uma forma de atendimento de suas necessidades. As demais crianças, em “situação regular”, continuavam a ser assunto exclusivo das famílias.
Em verdade, o poder público agia com foco no controle e contenção social, tratando as famílias pobres como se incapazes fossem, e com total desprezo aos vínculos familiares. Mais do que alguém em perigo, os vulneráveis eram enxergados como um risco, uma ameaça à sociedade, e foi essa a visão que imprimiu o tom à nossa legislação, durante muito tempo.
A Constituição Federal de 1988 acolheu a criança e o adolescente como seres sociais detentores de direitos, proclamando a doutrina da proteção integral. Estabeleceu a família como a base da sociedade e atribuiu a ela, à sociedade e ao Estado o dever de colaboração, para garantia dos direitos fundamentais da criança, com absoluta prioridade, colocando-a a salvo de toda forma de violência e negligência,
Na sequência, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8.069/90) estabeleceu um novo programa de proteção à infância e à adolescência, reconhecendo-os formalmente como sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento.
Apesar da evolução legislativa, crianças e adolescentes ainda são expressivo foco de violência e, não obstante devesse a família ser um referencial de proteção, propiciando a todos os seus membros, em especial às crianças e aos adolescentes, condições que garantissem acesso à concretização de seus direitos fundamentais, o mais frequente é a violência intrafamiliar, ou seja, a praticada no interior dos lares e na esfera privada.
Esse caráter não coletivo das relações – que se veem protegidas pelos direitos à intimidade e à privacidade – implica a não identificação clara da violência familiar, que pode prevalecer e permanecer encoberta por longos períodos. Assim, ao contrário de se constituírem em templos sagrados de proteção, os lares, em muitos casos, revelam-se como espaços de silêncio e risco.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 indicam que, no ano de 2022, dos 74.930 registros de estupro, 56.820 tratavam de casos com vítimas vulneráveis e que, em 68,3% dos casos, o ambiente de prevalência foi a residência das vítimas. Ainda, 86,1% dos agressores eram pessoas conhecidas das vítimas, na faixa etária entre 0 e 13 anos.
Os dados referenciados acima em relação ao abuso sexual infantil se repetem na pesquisa apresentada no livro “Abuso Sexual Infantil - Proteção Jurídica e Rede de Atendimento às Vítimas - Natureza e Análise de Casos” (Juruá, 2023). Nesta se apurou que pais, padrastos, avôs e “vodrastos” compuseram a categoria de agentes mais identificados como abusadores, tanto para vítimas do sexo feminino, quanto do masculino. No caso de vítimas do sexo feminino, destacou-se também a atuação de agentes masculinos com parentesco estendido.
A mesma pesquisa apontou que os locais de prevalência das agressões foram a casa do agressor, a residência comum da vítima e do agressor, ou a casa da vítima, tanto para vítimas meninas (76%), quanto para os meninos (63%).
Necessário pontuar que diversos fatores impactam na subnotificação da violência contra crianças e adolescentes. Em regra, o registro necessita do engajamento de um adulto, sendo que os casos cujos agravos não evoluem para a necessidade de atendimento médico ou para a letalidade, não são notificados.
O acesso e a compreensão sobre os dados de prevalência, os fatores de risco e de proteção e as barreiras à revelação são fundamentais em diversos aspectos. Essa compreensão permite a identificação das lacunas existentes nos fluxos de atendimento; a revisão de posicionamentos dos integrantes da rede de proteção ou do sistema de justiça; e mais, permite que, como seres sociais, todos se posicionem de forma esclarecida acerca de diversos temas relevantes, que cotidianamente são postos em discussão.
Exemplo desses temas é o estudo em casa (homeschooling), em relação ao qual frequentemente são lançados argumentos no sentido de que se trata de um direito de os pais educarem os filhos da forma como entenderem, com a alegação de que assim estariam protegidos da violência urbana.
Necessário aqui a reflexão acerca do que foi inicialmente pincelado. Considerando que crianças e adolescentes não são mais considerados objeto de intervenção dos adultos, tem-se que o interesse da criança deve ser o foco de qualquer decisão e não o suposto poder ilimitado que os pais exerceriam sobre ela.
Não bastasse, considerando que o ambiente de prevalência das violências praticadas contra crianças é eminentemente o doméstico, não parece lógico que justamente nesse ambiente se pretenda enclausurá-las, quanto mais quando se considera que a escola é sabidamente importante canal facilitador da revelação.
Outro tema controverso é que o diz respeito à educação sexual nas escolas. E aqui se está a tratar da educação adequada à idade e de acordo com o desenvolvimento de cada criança, permitindo-lhe identificar quais são os limites do contato adulto. Não se está a considerar o tão propalado mito da educação sexual desvirtuada que apresentaria às crianças obscenidades ou curiosidades não próprias para a idade.
O abuso sexual infantil, em regra, é praticado por membro da família, é crônico e realizado de uma forma que leva a criança a submeter-se a um conjunto de eventos que progridem ao longo do tempo. Dessa forma, a consciência sobre o seu próprio corpo e a ciência quanto ao limite entre o toque apropriado e o impróprio é fundamental, para que crianças e adolescentes compreendam se estão inseridas em situação de abuso.
Esse contexto, associado às informações relativas aos aspectos que inibem a revelação, devem necessariamente ser consideradas quando se discute o Projeto de Lei 1904/24 que tem, dentre outros objetivos, criminalizar com equiparação à pena do delito de homicídio, a interrupção da gravidez, inclusive nos casos de aborto legal, com gravidez decorrente de estupro, quando haja viabilidade fetal e a gestação tiver ultrapassado a barreira das 22 semanas.
Além de todas as falhas nos serviços públicos e as indevidas exigências que entravam e prolongam o processo de abortamento nos casos de violência sexual, em especial em relação às vítimas menores de idade, há que se considerar que a revelação constitui-se por uma complexa interação de fatores relacionados às características da criança, ambiente familiar, influências da comunidade e atitudes culturais e sociais, tratando-se de um processo contínuo, e não de um único evento. Disso decorre que a imensa maioria das vítimas de abuso sexual retém a informação até a idade adulta, sendo comum os casos em que a própria notícia acerca da gravidez seja retardada ao máximo. E, uma vez revelados o abuso e a gravidez, tratando-se de pessoas vulneráveis, vítimas de violências praticadas eminentemente no âmbito doméstico, há necessidade do engajamento de um adulto para a tomada de providências, o que pode levar muito tempo nas complexas dinâmicas familiares de lares abusivos.
Necessário apontar que não apenas as mulheres e meninas responderiam por crime ou ato infracional equiparado a crime de homicídio. O Projeto de Lei 1904/24 intimida (ainda mais) e pune os profissionais médicos quando traz hipótese que afasta a excludente de ilicitude prevista no artigo 128 do Código Penal. Em muitos casos, o abortamento será inatingível, sendo as vítimas condenadas a gestar, parir e conviver com o fruto da violência sofrida.
Dessa forma, a reflexão que se propõe é a respeito da imprescindibilidade do acesso à informação qualificada, permitindo que o tema do abuso sexual infantil e diversos outros a ele estreitamente relacionados sejam tratados de forma consciente e sem tabus. Em relação especificamente à alteração legislativa que se pretende com o PL 1904/24, não bastasse a cristalina violação dos direitos humanos das mulheres, defender-se a criminalização com base em critério temporal de gestação no caso de aborto legal decorrente de estupro, incluídos os casos de vulnerabilidade etária, ultrapassa o limite do razoável e caracteriza tratamento desumano e cruel.
*Érika Pucci da Costa Leal é mestre em Direito da Saúde: Dimensões Individuais e Coletivas. Autora do Livro: Abuso Sexual Infantil: Proteção Jurídica e Rede de Atendimento às Vítimas - Natureza e Análise de Casos (Juruá, 2023). Promotora de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP).
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