A Inteligência Artificial vai nos deixar mais burros?

A inteligência artificial está mudando a forma como nos relacionamos e suas implicações são profundas. Colunista Kald Abdallah

Kald Abdallah* Publicado em 22/07/2025, às 06h00

O médico Kald Abdallah - Foto: arquivo pessoal

O ser humano evoluiu durante milhões de anos para se tornar uma espécie ultrassocial, e nossas características biológicas e psicológicas refletem essa realidade profunda. Interações sociais não são meros passatempos; elas estão no cerne das atividades humanas que mais nos trazem felicidade, significado e propósito, como o amor, a amizade e o senso de comunidade. É nesse tecido social intrincado que construímos nossa identidade e nos desenvolvemos plenamente.

Desde os primórdios da humanidade, viver em grupos sociais foi essencial para a sobrevivência. A cooperação e a comunicação eficazes permitiram que nossos ancestrais caçassem, coletassem alimentos e se protegessem de predadores. Com o tempo, essas interações sociais se tornaram mais complexas, dando origem a culturas, tradições e sistemas de valores que moldam nossas vidas até hoje.

Além disso, a ciência moderna tem demonstrado que a qualidade de nossas relações sociais está diretamente ligada à nossa saúde mental e física. Estudos mostram que pessoas com fortes conexões sociais tendem a viver mais e a ter menos problemas de saúde, como depressão e doenças cardíacas. Isso ocorre porque o apoio emocional e a sensação de pertencimento podem reduzir o estresse e promover um estilo de vida mais saudável. A saúde biopsicossocial de cada um de nós depende da qualidade da nossa rede social.

Pela primeira vez na história da espécie humana, uma inteligência não natural — a Inteligência Artificial (IA) — tem o potencial de se integrar profundamente à nossa rede social, tornando-se uma parte intrínseca das nossas interações diárias. Da curadoria de feeds personalizados a assistentes virtuais cada vez mais sofisticados, a IA já permeia a maneira como nos comunicamos, aprendemos e até como formamos nossas opiniões. Essa integração representa um salto qualitativo nas relações humano-tecnologia, com implicações vastas e pouco compreendidas.

Para ilustrar este ponto, convém lembrar que nossas emoções, personalidade, características biológicas como um todo foram desenhadas por milhões de anos para se conectar com outras pessoas. Estabelecer um relacionamento social com uma inteligência artificial que foi desenhada para um propósito bem diferente trará com certeza impactos imprevisíveis na forma como interpretamos nossas emoções, construímos relações sociais, estabelecemos redes sociais, a resolução de conflitos e na própria identidade pessoal. Este experimento está apenas começando, frequentemente imaginamos cenários catastróficos desencadeados pela IA em linha com o filme Exterminador do futuro, porém outro cenário bastante catastrófico seria uma epidemia de depressão, ansiedade, dependência de drogas, isolamento social e suicídio.

Apesar de alguns estudos científicos já estarem em andamento e começarem a mapear os primeiros contornos desse novo cenário, o que sabemos hoje sobre o impacto da IA na cognição humana é muito pouco. Estamos navegando em águas desconhecidas. A IA evolui a uma velocidade exponencial, uma agilidade que os modelos tradicionais de pesquisa e a capacidade humana de adaptação mal conseguem acompanhar. Essa lacuna de conhecimento é uma das maiores preocupações éticas e sociais da nossa era.

A velocidade com que a IA está se desenvolvendo é impressionante. Novos algoritmos e tecnologias estão sendo criados a cada dia, e a capacidade dessas inteligências artificiais de aprender e se adaptar está se tornando cada vez mais sofisticada. No entanto, essa rapidez também significa que estamos constantemente tentando entender e prever os impactos dessas tecnologias em nossas vidas, muitas vezes sem o tempo necessário para uma análise profunda e abrangente.

Um dos principais desafios é a falta de dados concretos e de longo prazo sobre como a IA afeta a cognição humana. Estudos preliminares sugerem que a exposição constante a tecnologias de IA pode alterar a maneira como processamos informações, tomamos decisões e interagimos com o mundo ao nosso redor. Por exemplo, a dependência de assistentes virtuais e algoritmos de recomendação pode reduzir nossa capacidade de pensar criticamente e de tomar decisões independentes, uma vez que estamos cada vez mais acostumados a receber respostas prontas e personalizadas.

Por exemplo o estudo do MIT, que recebeu uma boa atenção da mídia nas últimas semanas, demonstrou basicamente que a utilização da IA diminuiu a atividade cerebral e a memorização. Um estudo bem-feito, porém pequeno, sem acompanhamento a longo prazo e sem avaliação de outros aspectos cognitivos.

Para realmente entender o impacto da IA, serão necessários estudos de longo prazo, com populações heterogêneas, com muitas pessoas sendo acompanhadas, utilizando instrumentos específicos para mensurar o impacto em diferentes componentes da cognição humana. Por exemplo, estudar o impacto nas habilidades sociais, na capacidade de se comunicar, no pensamento crítico, na cognição moral, na cognição emocional, no pertencimento e significado. Estes estudos não existem hoje. Ou seja, para realmente entender o que a adição de uma inteligência artificial na rede social humana trará para o indivíduo levará tempo. Porém, no momento que os resultados saírem, é muito provável que o estrago já exista, portanto acredito que você não deva esperar estes resultados para começar a agir.

Além disso, a IA tem o potencial de influenciar nossas emoções e comportamentos de maneiras sutis, mas significativas. Algoritmos de redes sociais são projetados para maximizar o engajamento, muitas vezes promovendo conteúdos que provocam reações emocionais fortes. A isca para atrair você é a sua emoção. Isso pode levar a uma polarização das opiniões e a uma diminuição da exposição a perspectivas diversas, criando câmaras de eco que reforçam os vieses existentes. Ou seja, cria ambientes onde todos repetem as mesmas “verdades” um para o outro o tempo todo, fenômeno facilmente observado na atual polarização política.

Outro aspecto preocupante é a possibilidade de que a IA possa ser usada para manipular nossas percepções e comportamentos de maneiras que não compreendemos completamente. Tecnologias como deepfakes e algoritmos de personalização avançada têm o potencial de criar realidades alternativas convincentes, dificultando a distinção entre o que é real e o que é fabricado. Isso pode ter implicações profundas para a nossa compreensão da verdade e para a confiança nas informações que consumimos.

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Por outro lado, a IA pode se apresentar como uma grande oportunidade para o desenvolvimento das soft skills críticas que a crescente complexidade do mundo exige de cada indivíduo: pensamento crítico, autoconsciência e colaboração. Ferramentas de IA, quando bem utilizadas, podem atuar como tutores personalizados, oferecendo feedback imparcial e adaptado às necessidades individuais. Elas podem simular cenários complexos para aprimorar a tomada de decisão em ambientes de alto risco e até mesmo facilitar a colaboração global, rompendo barreiras linguísticas e geográficas instantaneamente. A IA tem o potencial de nos libertar de tarefas repetitivas e cognitivamente menos exigentes, permitindo que nos concentremos em atividades de maior valor que demandam nossa criatividade, inteligência social e julgamento ético.

O que você pode fazer para blindar-se contra os efeitos deletérios da IA? Esta não é uma pergunta trivial; ela deve ser uma prioridade urgente na mente de todos hoje em dia, especialmente dos jovens profissionais que serão os mais imersos nesse futuro. Não podemos nos dar ao luxo de esperar que a ciência nos traga todas as respostas definitivas antes de agirmos. O ritmo avassalador da mudança tecnológica é rápido demais para a pesquisa tradicional.

Ainda não há ciência adequada para uma conclusão completa e exaustiva sobre todos os impactos da IA na vida humana. Por isso, pensar criticamente a respeito do impacto da IA na sua própria vida deve ser uma prioridade para você. Isso significa questionar ativamente as informações recebidas, observar com atenção seus próprios padrões de uso da tecnologia e como eles afetam sua mente, buscar diversas fontes de informação para evitar câmaras de eco e cultivar ativamente as habilidades cognitivas e sociais que a IA ainda não consegue replicar: sua curiosidade inata, sua capacidade de julgamento moral e ético, sua empatia genuína, sua originalidade criativa e sua profunda inteligência social – ou seja, as suas Soft Skills. A responsabilidade de proteger, nutrir e desenvolver sua própria cognição em um mundo cada vez mais mediado pela IA é sua.

A integração da Inteligência Artificial (IA) em nosso dia a dia apresenta um desafio único às nossas capacidades sociais, emocionais e cognitivas. Assim como um firewall físico protege uma rede de computadores, precisamos de estratégias para "proteger" nossas capacidades humanas contra impactos negativos em potencial, garantindo que aproveitamos os benefícios da IA sem atrofiar nossos traços humanos essenciais. Não se trata de evitar a IA, mas sim de um engajamento intencional e consciente.

Entendendo os Potenciais Impactos Negativos, a entrada da IA na sua rede social individual pode reduzir o número e a qualidade das suas conexões causando isolamento social, pois interações com a IA podem criar a ilusão de conexão, diminuindo potencialmente a necessidade e as habilidades em relacionamentos humanos genuínos, complexos e presenciais.

Você poderá perder a capacidade de manter a atenção e o foco por períodos prolongados. Feeds de conteúdo impulsionados por IA (mídias sociais, vídeos curtos) são otimizados para engajamento constante e gratificação instantânea, treinando nossos cérebros para a troca rápida de estímulos, em vez de foco sustentado e trabalho profundo.

A utilização continuada e frequente pode criar uma “preguiça mental”, onde sua capacidade de fazer análises sistemáticas e pensar criticamente entra em desuso. Lembre-se, um dos fatores mais protetores do declínio cognitivo é a utilização ativa do nosso cérebro, pensar é fundamental. Este pensamento ativo, que demanda energia e engajamento, concentrado e com atenção, que foi descrito por Daniel Kannemann como sistema 2 (forma lenta e deliberada), é uma habilidade que se pouco utilizada irá atrofiar.

Afinal o que você pode fazer a respeito? Proteger suas habilidades sociais, emocionais e cognitivas não é sobre rejeitar a IA, mas sobre se tornar um usuário consciente e estratégico.

Desenvolva o seu pensamento crítico: Ao aprender uma nova habilidade ou conceito, comece sem assistência de IA. Engaje-se na prática deliberada, esforce-se para resolver problemas e faça anotações à mão. Isso fortalece as vias neurais para análise crítica, formação de memória e pensamento independente. Somente após adquirir uma compreensão fundamental você deve usar a IA como uma ferramenta para eficiência ou expansão. Aprenda a estabelecer uma relação dinâmica com a IA debatendo, questionando, identificando furos e buscando a perspectiva de diversas IA´s.

Abrace o Desconforto e o Esforço: Reconheça que o verdadeiro crescimento cognitivo muitas vezes vem do esforço. Se uma IA torna uma tarefa muito fácil, considere se você está perdendo uma valiosa oportunidade de aprendizado.

Priorize a Conexão Humana: Procure ativamente e invista em interações presenciais ou por voz. Essas conexões não mediadas são cruciais para a empatia, a construção de confiança e a compreensão de sinais sociais complexos. Desenvolva sua cognição emocional e a empatia. Desenvolva a sua teoria da mente, ou seja, sua capacidade de imaginar como as outras pessoas pensam e se sentem, habilidade esta que só pode ser desenvolvida em relacionamentos e interações humanas intimas e de qualidade. Desenvolva a sua habilidade de resolução de conflitos.

Aprendizado contínuo sobre IA: Mantenha-se informado sobre como a IA funciona, suas limitações, o impacto na cognição humana e suas implicações éticas. Esse conhecimento o capacita a ser um usuário mais criterioso.

Em última análise, seu "firewall" contra os impactos negativos da IA não é um software, mas um compromisso com a autonomia humana ativa. Trata-se de escolher conscientemente desenvolver e exercitar suas capacidades humanas únicas, garantindo que a IA permaneça uma ferramenta poderosa em suas mãos, porém com você no comando.

*Kald Abdallah é médico formado pela Universidade Estadual de Londrina. Fez residência e doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pós-doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston nos EUA. Instagram @kaldconexaosapiens

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